Parábola das garças ou entre o certo e o certo 01/02/2017
- CARLOS AYRES BRITTO*
Quem observa bem o pouso e a decolagem das garças? Já o fiz, sobretudo nos meus 33 anos de residência em Aracaju.
Elas chegam em bandos, ao pôr do sol, e se aproximam cuidadosamente dos manguezais, dos brejos, dos terrenos pantanosos que são o seu quarto de dormir. Os locais preferidos do seu merecido sono.
E chegam em meio a tênues circunvoluções. Meio devagar, meio puxando o seu próprio freio de mão, falemos assim. Cuidadosamente, como se cada descida fosse uma primeira vez.
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É uma espécie de passo de dança. Uma estudada coreografia para a suavidade e também a elegância no ato de trocar o céu pelo chão. Ou pelos retorcidos galhos das árvores típicas dos manguezais em que, por vezes, também caem nos braços de Morfeu.
Finda a noite ou aos primeiros sinais da luz do dia, elas, as garças, balançam-se um pouco nas compridas pernas ainda fincadas no lodoso chão.
Ou recurvadamente presas nos galhos úmidos, também lodosos, das árvores de mangue em que pousadas.
Ainda uma vez, tudo se passa com suavidade e mal disfarçada elegância.
O cuidado consigo mesmas e com todo o seu entorno a dar as cartas.
E assim como quem primeiro cautelosamente levita, como quem primeiro desconfia da sua própria aptidão de voar, soltam enfim as compridas asas para o movimento agora inverso da troca do chão pelo céu.
Pois bem, quando desse retornar alado para outras plagas ditadas pelo GPS do seu próprio estômago vazio, as garças de Aracaju passavam rentes às varandas dos apartamentos em que já morei.
Altas varandas, em frente a um dos mais encorpados manguezais da cidade.
E o que notava o meu atento olhar sobre essa matinal revoada?
Que nenhuma delas trazia o menor sinal de lama sobre o alvor das respectivas penas.
Uma nesga de lodo que fosse! Nada, nada a tisnar a virginal brancura de uma plumagem que os dicionaristas chamam de “estrutura epidérmica das aves”.
Elas, as garças, como que a tomar cuidados tão assépticos quanto éticos na estratégica hora do pouso e da decolagem.
Como que a dizer para nós, seres humanos, que o entorno de cada uma e de todas é enlameado, sim. É lodoso, sim. É pantanoso, sim, mas nenhuma se permite contaminar.
Não parece que vivem a nos mandar recado?
Elas, as garças?
O recado de que o modo mais natural de ser é não se deixar corromper?
Corromper como prosaico sinônimo de tornar pútrido, perverter, depravar, delinquir, desfigurar, contrafazer, desnaturar, enfim?
Donde a lógica dedução de que, “nas coisas ditas humanas” (expressão colhida em Baruch Spinoza), o primeiro modo mais inteligente de ser é permanecer ético. Decente. Honesto.
Porque assim é que a gente se dá ao respeito. Assim é que todo indivíduo consegue viver inteiramente a salvo do olhar investigativo da polícia.
Tanto quanto do olhar acusatório do Ministério Público e processante do Poder Judiciário.
Por extensão, totalmente à vontade ante a mais intensa vigília da imprensa e da cidadania.
Passando a manter com o seu próprio travesseiro, à noite, o mais arrebatado caso de amor.
Há mais o que dizer quanto à própria compostura física das garças.
Elas trazem no olhar a serenidade e o justo orgulho de quem vive com sua autoestima no ponto.
Guardam a mais larga distância do estresse dos felinos, por ilustração.
E falar de autoestima, para nós, humanos, é falar de algo enlaçado à centralidade individual. Uma coisa a puxar outra. Assim como centralidade individual equivale a equilíbrio interior.
Próprio de quem otimiza a funcionalidade do quociente emocional (QE) e do quociente intelectual (QI) para, numa espécie de casamento por amor, partejar o rebento da consciência.
Ciranda ou mutirão das coisas intrinsecamente meritórias, então. A culminar nesse topo do ser que não é senão ela, consciência.
É isso mesmo. Postado nesse mais alto ponto da própria consciência, o indivíduo cristaliza em si a serenidade e a autoestima.
Vê tudo com mais clareza. Sensitividade. Sensatez. Esférica ou holisticamente. Não por modo reducionista ou apenas angular, parcial, mutilado.
Não confunde jamais o bem do pluralismo de opiniões com o mal do divisionismo ideológico.
Pega no ar (e não no tranco) a diferença entre o certo e o errado.
Começando pela dimensão ética e subindo aos mais elevados patamares da justiça, da bondade, da beleza e da verdade, para ficarmos apenas com as quatro principais virtudes da clássica filosofia grega.
Enlevadamente cônscio de que virtude atrai virtude com força ainda maior que a do vício para atrair o vício.
O bem é mais empoderado que o mal, e nesse diapasão foi que Einstein sentenciou:
“Quando a mente humana se abre para uma nova ideia, impossível retornar ao tamanho inicial”.
Achego-me do final deste meu artigo. Fazendo-o, ajunto o que ainda tenho como aptidão da consciência: distinguir entre o certo e o certo (falei assim, muitas vezes, no exercício da minha judicatura no TSE e no STF).
Explico melhor. Esse locus pinacular da consciência ainda apetrecha a pessoa humana para mais seguramente diferenciar o certo real do certo aparente.
O certo aparente, estagnado na visão monocular das coisas.
Ali incrustado no radical seccionamento entre conteúdos e continente. Confundindo o lateral com o central. A espécie com o gênero, para anular o quê?
O gênero mesmo, o central mesmo, o continente mesmo.
Quando precisamente no cristalino espelho do central, do gênero e do continente é que Ciência e Vida têm a certeza de olhar para si mesmas.
Pensemos nisso, a respeito dessa polêmica em torno das alternativas regimentais do STF quanto ao novo relator dos processos atinentes à chamada Operação Lava Jato.
Qual dessas alternativas a que mais imprime ganhos de funcionalidade sistêmica à Constituição?
Qual a que se dota do mérito de rimar, toante e consoantemente, novo relator e princípio constitucional do “juízo” ou “juiz natural” (inciso XXXVII do artigo 5º da Constituição)?
Com a palavra os senhores ministros da Casa.
Pensemos nisso, a respeito das alternativas regimentais do STF quanto ao novo relator