Pequi, o rei do Cerrado, da polpa à castanha 07/02/2017
- Neide Rigo - O Estado de S.Paulo
Dizem que ele, o pequizeiro, é o rei do Cerrado e esse título não poderia ser mais apropriado.
Afinal, entre suas reinações e generosidades, o que tem a oferecer é muito mais do que a polpa dourada que se pode roer ou o espinho que faz doer.
O fruto é uma caixa de surpresas e a planta inteira garante o sustento dos seus súditos, homens e animais, de tantos usos que tem.
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Dependendo da região, pode receber outros nomes, como piqui, piquiá, amêndoa-de-espinho, piquiá-bravo, grão-pequiá, pequerim, pequiá-pedra e suari, quase todos derivados do tupi py e qui, casca e espinho, respectivamente.
Embora outros tipos de pequi possam ser encontrados espalhados por Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Tocantins, Bahia, Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e até São Paulo, é na rica flora do Brasil central que o pequi se destaca.
O que domina por ali é a espécie Caryocar brasiliense, árvore rústica, forte, tortuosa, de folhas grandes e secas e flores atrativas, que quando caem alimentam animais silvestres.
Durante a safra, que começa em novembro e se estende até fevereiro, aproximadamente, inúmeras famílias rurais coletam o pequi para seu próprio sustento e para a obtenção de renda com a comercialização do fruto e seus produtos, que não são poucos.
A massa amarela que recobre o caroço pode ser congelada ou conservada em óleo ou salmoura; um óleo perfumado de cor laranja é extraído da polpa e outro azeite clarinho de sabor discreto vem das amêndoas - ambos são usados na cozinha.
Aliás, pouca gente fora da região de origem conhece a amêndoa e posso dizer, sem precisar guardar devidas proporções, que ela se compara em qualidade às clássicas europeias amêndoas, nozes ou avelãs.
Se juntarmos a castanha de pequi aos nossos coquinhos, tal como licuri, além da castanha do maranhão, da monguba, da castanha amazônica, do baru, da sapucaia, castanha de caju ou ainda outras não nativas que se dão bem por aqui, como a castanha da árvore chapéu-de-sol ou amendoeira-da-praia, teremos um repertório de castanhas de fazer inveja por aí.
Mas, seguindo no pequi, temos ainda licores feitos da castanha e da polpa, farinha, sabão, cosméticos, corantes, alimentação animal, medicamentos etc., geralmente tudo de fabrico artesanal.
Pode nos parecer estranho usar o termo roer na mesa civilizada, mas em se tratando de pequi é o melhor verbo para se conjugar.
A não ser que a polpa já venha ao prato cortada em lascas (e isso seria o ideal em restaurantes ou em serviços menos informais), o melhor jeito de se comer pequi é pegar com as mãos e roer o caroço.
É assim que é comido quando colocado inteiro na famosa galinhada ou no arroz de pequi, por exemplo – roendo a polpa macia que recobre a semente.
As conservas em lascas ou o creme feito com elas são encontrados mais facilmente em mercados municipais ou empórios de produtos brasileiros mesmo na entressafra.
Só para entender a anatomia do fruto, ele é composto de casca grossa de superfície verde, mais clara internamente, fácil de cortar, e um caroço ou mais, de formato ligeiramente ovalado no tamanho de uma gema ou do ovo inteiro, coberto da fina camada oleosa e perfumada, cremosa, em diferentes tons de amarelo dependendo do tipo.
Logo abaixo da polpa do caroço, há uma camada mais clara e dura e, em seguida, outra com os espinhos entranhados protegendo o cerne branco que é a deliciosa castanha.
Quando o fruto é roído, a camada superficial de polpa macia sairá no dente e é aí que mora a perspicácia no trato para evitar aborrecimentos.
O dente não deve insistir na barreira mais dura que separa a polpa da camada lenhosa cheia de espinhos, que é como um acolchoado de finas farpas com vida própria.
Uma dentada em falso e verá o inferno se instalar dentro da sua boca.
É típico fruto que deveria vir com manual de instruções.
Uma vez vi um italiano desavisado dando uma mordida num caroço de pequi que perfumava o arroz e em seguida a dona do restaurante teve que passar horas tirando os espinhos da gengiva e do céu da boca com pinça.
O grande problema é que as microfarpas, do tamanho de uma vírgula, são soltas, alucinadas e parecem ter uma afinidade mórbida pelas nossas superfícies.
Mal encostam numa ponta de dedo e já vão entrando causando muita dor. Imagine numa mucosa.
Não tem outro jeito: para chegar à deliciosa amêndoa é preciso passar pelas farpas.
Se tomar alguns cuidados, não há o que temer.
Quando o fruto é cozido em casa, depois de tirar a polpa ou roer, é só apoiar a faca em cima do fruto e bater com um martelo.
Algumas recomendações de quem sabe o que está falando: use luvas de silicone; entre o fruto e a tábua, use um pano de prato para melhorar a adesão e evitar que as metades escorreguem e voem pela cozinha depois da martelada; e mantenha cachorros comilões longe do local para evitar acidentes caso algum caroço insista em voar.
Se conseguir passar por isto sem incômodo, terá a recompensa inesquecível.
Estas castanhas frescas são úmidas, leitosas e com sabor muito peculiar, agradável, lembrando o pequi muito suavemente.
Quem não gosta de pequi certamente vai gostar da castanha.
Sorte que podemos comprar as castanhas já prontas, sequinhas, torradas, mais gostosas e crocantes que as cozidas.
No Mercado Municipal de Pinheiros, procure na banca do Cerrado. Ou encomende a quem for a Brasília, Pirenópolis, Goiás Velho.
Mas, se você tiver um tanto de pequi fresco e quiser aproveitar para extrair a castanha - compro sempre na frente do Mercado Municipal da Lapa quando é época -, faça assim: extraia manualmente a polpa (aproveite para cozinhar junto do arroz, por exemplo) e deixe os caroços secarem ao sol por cerca de sete dias.
Depois, corte com faca e martelo para extrair a castanha.
Se precisar, introduza a ponta de uma faca na cavidade onde está a castanha caso ela não saia facilmente.
Lave bem e certifique-se de que não haja espinho grudado.
Seque no forno bem baixinho, a cerca de 130°C, até que fique crocante – cerca de meia hora.
Use em tortas, recheios, sorvetes, biscoitos, bolos etc.