Os interesses do PT e o lado oculto do plebiscito de Dilma 28/06/2013
- Gabriel Castro, Cecília Ritto e Marcela Mattos - Veja.com
“(O plebiscito) É um instrumento popular para legitimar governos e conferir aos governantes superpoderes, um cheque em branco para que o governante dê o significado à autorização dada pelo povo nas urnas. Isso pode manietar o povo”, Gustavo Binenbojm, professor de Direito Administrativo e Constitucional da UERJ e da FGV.
Destinada a confrontar a população com questões objetivas e diretas, a realização de um plebiscito é uma ferramenta legítima do processo democrático.
A história recente, entretanto, demonstra que ele pode ser utilizado para propósitos pouco nobres: vizinhos sul-americanos recorreram ao mecanismo para tentar governar diretamente com o povo, passando por cima das instituições democráticas e se perpetuando no poder.
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Em resposta à inédita onda de protestos que chacoalhou o Brasil, a presidente Dilma Rousseff propôs uma consulta popular para promover uma reforma política no país - ainda que nenhum cartaz tenha reivindicado isso.
A estratégia bolivariana, tirada da manga no momento mais crítico do seu governo, acoberta um perigoso interesse: aprovar o financiamento público de campanha e o voto em lista, antigos sonhos do PT.
Como avalia o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, a opção pelo plebiscito “joga areia nos olhos do povo”.
Um levantamento do Datafolha constatou que a reforma política era uma reivindicação de apenas 1% dos manifestantes que tomaram as ruas de São Paulo nas últimas semanas.
Mas o governo não quer perder a oportunidade aberta pelo clima mudancista.
O PT defende o financiamento público de campanha porque seria o maior beneficiário desses recursos, já que tem a principal bancada na Câmara dos Deputados e esse é o critério usado para a divisão do bolo.
Com o financiamento público, o partido conseguiria assegurar recursos superiores aos das outras siglas.
Caso o caixa dois não seja efetivamente extinto, o que é uma hipótese plausível, o dinheiro de bancos e empreiteiras continuariam a seguir a lógica de favorecer quem tem a chave do cofre - no caso da União, o PT.
Por isso, interessava mais ao partido a ideia inicial de Dilma, que incluía uma Assembleia Constituinte com poderes para dar os rumos à reforma.
Mas a ideia fracassou por ser inconsistente e sem base jurídica. Ainda assim, o PT aposta na capacidade de mobilização de sua própria militância para moldar o sistema político-eleitoral.
Ciente das intenções de seu principal aliado, o PMDB é majoritariamente contrário ao financiamento público.
Os peemedebistas têm bom relacionamento com o empresariado e um elevado número de governos estaduais; também por isso, não veem razões para uma mudança no sistema.
Voto proporcional
O sistema de eleição para deputados e vereadores é o segundo ponto-chave que deve constar do plebiscito.
A adoção do voto em lista, outro tema que surgirá na consulta, favoreceria o PT. O partido tem questão fechada na defesa desse tema: seguidas pesquisas mostram que, dentre as legendas, o Partido dos Trabalhadores possui, de longe, a maior fatia de eleitorado fiel.
O DEM, que se posiciona na centro-direita e não tem concorrentes neste campo, também quer o voto em lista.
O PSDB é a favor do voto distrital, cuja defesa consta do estatuto da sigla. A regra seria bem aplicável em estados como São Paulo e Minas Gerais - onde os tucanos têm maior poder de fogo.
Nesses estados, muito extensos e populosos, os candidatos se dividem informalmente entre cidades e regiões, o que já se aproxima do voto distrital.
O PSD também fechou questão em defesa do voto distrital.
Para o PMDB, que sofre de fraqueza programática e é mais personalista dos que as outras siglas, a saída defendida é o chamado "distritão".
O modelo é o mais simples possível: o eleitor escolhe o candidato, individualmente, e o voto não influencia o desempenho dos outros nomes do partido.
Ganham os mais votados e o quociente eleitoral, que provoca o chamado "efeito Tiririca", seria abolido. É como se cada estado fosse um distrito.
Pressa
Nos últimos dois anos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se empenhou pessoalmente nas negociações para a implementação da reforma política defendida pelo PT.
Mas, no Congresso, o tema emperrou. O partido já havia desistido de fazer uma reforma que valesse para as eleições de 2014 porque, nesse caso, a mudança precisaria estar aprovada até o início de outubro deste ano.
Mas os protestos nas ruas foram vistos pelo PT como uma "janela de oportunidade". O partido não quer perder o impulso dado pelas manifestações populares. Por isso, tem pressa.
E não é só: o momento atual é perfeito para que a sigla molde a reforma política ao seu gosto. Dono da maior bancada na Câmara e hóspede do Palácio do Planalto, o PT não pode garantir que esse cenário será o mesmo na próxima legislatura.
Com uma militância ativa em torno dos pontos centrais, além de braços organizados em sindicatos e entidades estudantis, o PT aposta que poderá converter essa força de mobilização em resultados no plebiscito.
Para isso, é até bom que o eleitor comum, desmobilizado, não participe do processo.
"Seguramente não são todos os cidadãos que vão se interessar por participar do plebiscito, mas todos aqueles que têm interesse neste debate terão espaço concreto de atuação: poder votar e ajudar a definir as prioridades da reforma política", disse o ministro da Educação, Aloizio Mercadante.
O presidente do DEM, senador José Agripino Maia (RN), estranha a pressa repentina. "É no mínimo curioso. O governo tem pressa para encontrar o caminho diversionista e fugir da crise", diz ele.
O deputado Rubens Bueno, líder do novo MD (fusão do PPS com o PMN) na Câmara, defende que o Congresso elabore a reforma e a população apenas decida se aprova ou rejeita as mudanças, em bloco:
"A nossa ideia básica é o Congresso Nacional votar todas essas sugestões e submetê-las a um referendo na mesma data das eleições do ano que vem", diz.
Riscos e obstáculos
A cegueira momentânea causada pelo anúncio inesperado da presidente encobre uma dificuldade técnica: o de apresentar, por plebiscito, questões para as quais a votação pode não apresentar maioria.
“Basta haver três perguntas para não ser plebiscito. Imagine que, no sistema eleitoral (proporcional, distrital e distrital misto), um tipo consiga 35% dos votos, o outro 34% e o terceiro 31%. Não há formação de maioria”, alerta Reale Júnior, que considera impossível usar esse modelo de votação para um tema como a reforma política.
“Não há necessidade de chamar as pessoas para definir a reforma. É uma falta de juízo”, completa Reale, reiterando que os temas em jogo são bastante complexos.
Na última quarta-feira, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto, comparou o plebiscito proposto agora com a entrega de um “cheque em branco” aos deputados e senadores que já miram nas eleições de daqui a um ano e meio.
A metáfora de Britto é uma referência à grande margem de indefinição que pode resultar da votação que se desenha.
O roteiro estabelecido para os plebiscitos é, em resumo, a criação de um decreto legislativo com um terço de aprovação de uma das Casas, a discussão dos temas e das perguntas ao eleitor, a apuração e o encaminhamento da decisão ao Congresso, que deve seguir a orientação das urnas.
O rito é perfeito, por exemplo, para a decisão sobre a emancipação de um município. Mas incompatível com questões como financiamento público de campanhas ou sistemas de votação.
Afinal, os eleitores definirão “se” algo deve ser feito, entregando aos parlamentares a decisão sobre “como” isso será posto em prática.
“Esse processo pode resultar em uma deliberação da população no vazio”, afirma Gustavo Binenbojm, professor de Direito Administrativo e Constitucional da UERJ e do curso de pós-graduação em Direito da Fundação Getúlio Vargas.
O plebiscito de Dilma, por enquanto, está mergulhado em incertezas.
“A expressão ‘reforma política’ é nesse momento um rótulo em uma caixa vazia. Ninguém sabe ao certo quais medidas serão propostas”, explica o coordenador-geral do instituto de Direito da PUC-Rio, Adriano Pillati, para quem é preciso, no mínimo, de três a quatro meses de debate sobre o tema com a população.
A saída apontada pelos especialistas para que seja assegurada a participação popular, mas de forma mais prudente, é, ao fim do processo, a realização de um referendo.
Depois de o Congresso fazer o texto da reforma política, a população seria convocada às urnas para dizer sim ou não sobre uma proposta real.
Tecnicamente, é possível haver o plebiscito antes e o referendo depois – apesar de não se eliminar, com isso, os problemas na origem da proposta de agora.
“Existe um risco de a opção da população ser desvirtuada. Por isso, deveria haver plebiscito e referendo”, afirma Ivar A. Hartmann, professor de Direito da FGV do Rio de Janeiro.
No momento, a demanda indiscutível da população nas ruas é por uma política menos corrupta e mais voltada para o interesse público.
A reforma política – necessária e que se arrasta há anos sem que haja consenso – surgiu como a tradução possível feita pelos governantes para retomar o diálogo com os brasileiros.
“Há uma esperança enorme em torno da reforma política. Apesar de necessária, nenhuma reforma produz políticos melhores. O que muda os políticos é a sociedade, através do voto”, lembra Adriano Pillati.
O que está em jogo na reforma política
Financiamento de campanha
Como é hoje: Para financiar as campanhas eleitorais, os partidos políticos podem receber recursos privados, além de doações empresariais.
Proposta: O financiamento passaria a ser público, proveniente de um fundo partidário. Assim, haveria menor influência do poder econômico nas campanhas. Outra ideia é o financiamento misto, com recursos públicos e privados. Algumas propostas defendem ainda o fim das doações empresariais — ficaria permitido apenas as doações feitas por pessoa física.
Como mudar: Projeto de lei, que deve ser aprovados por maioria simples da Câmara e do Senado, em caso de lei ordinária, ou por maioria absoluta, quando a lei é complementar.
Coligações
Como é hoje: Para ampliar o tempo de propaganda no horário eleitoral na televisão, alguns partidos formam alianças, criando os chamados “partidos de aluguel”. Esses partidos alugados não têm representatividade, apenas vendem seu apoio em troca de cargos no Executivo.
Proposta: Proibir a formação das coligações partidárias. Com essa proibição, um candidato de outro partido, que não teve votos suficientes, fica impedido de se eleger em função do coeficiente eleitoral.
Como mudar: Projeto de lei, que deve ser aprovados por maioria simples da Câmara e do Senado, em caso de lei ordinária, ou por maioria absoluta, quando a lei é complementar.
Calendário eleitoral
Como é hoje: O calendário eleitoral prevê eleições a cada dois anos. As municipais acontecem dois anos após as eleições federais e estaduais.
Proposta: Fazer a integração das eleições municipais, estaduais e nacionais. Assim, o Brasil teria eleições a cada quatro anos, e não mais a cada dois anos, diminuindo os gastos.
Como mudar: Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Para ser aprovada, essa emenda precisa de 3/5 dos votos da Câmara e do Senado em duas votações no plenário.
O "recall" político
Como é hoje: Não há nada que vincule um político às suas promessas de campanha.
Proposta: Sugerida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, a adoção desse instrumento - presente na legislação de países como Suíça e Estados Unidos -, permitiria que os eleitores revogassem o mandato de políticos que se afastam de sua plataforma eleitoral.
Como mudar: Proposta de Emenda Constitucional (PEC), uma emenda que altera trechos da Constituição Federal. Para ser aprovada, essa emenda precisa de 3/5 dos votos da Câmara e do Senado em duas votações no plenário.
Sistema proporcional
Como é hoje: O sistema é proporcional, o que significa que as cadeiras do parlamento são divididas entre os partidos de acordo com a proporção de votos obtida por cada um. Esse sistema permite o fenômeno dos "puxadores de voto" - candidatos que atraem grande número de eleitores e assim ajudam o partido a eleger nomes menos expressivos
Proposta: Há três propostas em circulação: a do voto distrital e a do "distritão" e a do voto proporcional misto
No voto distrital, o país é dividido em distritos, em número igual ao das vagas no Legislativo. Cada distrito elege um representante por maioria absoluta, em um turno ou dois. É um sistema em que há um vínculo forte entre o eleito e o distrito que ele representa
No "distritão", são eleitos os candidatos que tiveram mais votos, sem que haja distribuição de cadeiras entre os partidos. É um sistema muito calcado nos indivíduos, que privilegia as personalidades conhecidas ou aqueles que têm mais recursos para fazer campanha. Os partidos são enfraquecidos
No sistema de voto proporcional misto, o eleitor vota diretamente em um candidato para preencher metade das vagas legislativas, e vota em uma lista previamente ordenada de candidatos, definida pelos partidos, para preencher a outra metade
Como mudar: Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Para ser aprovada, essa emenda precisa de 3/5 dos votos da Câmara e do Senado em duas votações no plenário.
Listas
Como é hoje: O sistema é em listra aberta: o eleitor pode votar tanto na legenda quanto num candidato específico. É um sistema que procura equilibrar a escolha entre personalidades e programas partidários
Proposta: No sistema de lista fechada, o eleitor vota nos partidos, que apresentam previamente uma lista com seus candidatos, em ordem de "preferência". Os nomes no topo da lista têm mais chance de conquistar um mandato. É um sistema que dá grande poder às cúpulas partidárias
Na sistema de lista flexível, o partido monta sua lista, mas o eleitor pode votar também no seu candidato preferido. Com isso, um candidato pode eventualmente "furar a fila"
Como mudar: Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Para ser aprovada, essa emenda precisa de 3/5 dos votos da Câmara e do Senado em duas votações no plenário.
Suplentes no Senado
Como é hoje: Os suplentes são candidatos que não obtiveram o número de votos mínimo para conquistar um mandato próprio, mas pertencem a partidos ou coligações com representantes no legislativo. Eles podem substituir, temporária ou definitivamente, o titular da cadeira. O sistema no Senado é um pouco diferente, pois o suplente, embora não receba votos diretamente, é eleito juntamente com o titular (como uma espécie de "vice")
Proposta: Acabar com a figura suplente no Senado, uma casa com vários “legisladores sem voto". Caso um senador deixasse seu mandato, assumiria, em vez de um suplente, o segundo candidato mais votado daquele estado.
Como mudar: Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Para ser aprovada, essa emenda precisa de 3/5 dos votos da Câmara e do Senado em duas votações no plenário.