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Vida e obra de um antropólogo
03/12/2010 - Paulo Sérgio Pinheiro*

Após a publicação de As Estruturas Elementares do Parentesco, em 1949, Simone de Beauvoir pontificou: "Por um longo tempo a sociologia francesa estava adormecida: o livro de Lévi-Strauss marca seu deslumbrante despertar. A obra precisa ser lida". Sessenta e um anos depois, graças a Patrick Wilcken, essa obrigação fica evidente com Claude Lévi-Strauss - The Poet in the Laboratory, que revê a vida do antropólogo como parte inextricável de sua obra.

O encontro com o Brasil é um dos inúmeros incidentes inesperados nos 50 primeiros anos da carreira de Lévi-Strauss, em que suas escolhas, ele nos faz crer, não eram conscientes - mudanças de direção eram sempre impostas. A mesma explicação vai servir para outras viradas inesperadas na sua vida. Em 1934, ele se candidatou a uma das duas cadeiras de sociologia na Universidade de São Paulo, que estava sendo fundada com o apoio de Julio de Mesquita Filho. Ensinou na instituição durante três anos, até novembro de 1937, quando fez sua primeira expedição etnográfica ao encontro dos índios cadoveus e bororos. Voltaria em março de 1938 e durante oito meses faz uma segunda expedição ao Norte e ao Sul de Mato Grosso, onde encontra os índios nambiquaras. Depois desse encontro icônico, a antropologia jamais seria a mesma.

Após ser demitido do ensino público pela política antissemita do governo fascista de Vichy, na França, não obteve, também por antissemitismo do Estado Novo, um outro visto para o Brasil. Então, viajou em 1941 como refugiado para os Estados Unidos, onde começou a ensinar na New School of Social Research, em Nova York. Ali entrou em contato com antropólogos, especialmente Frank Boase que, na cultura nativa americana, fizera estudos de linguagem, antropologia física e cultura material dos indígenas americanos. Lévi-Strauss estava pronto para a teoria, buscando um princípio organizador, a estrutura interna do que observara em suas expedições no Brasil.


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Decisivo foi o encontro com Roman Jakobson, que possibilitou a Lévi-Strauss, adotando a perspectiva do linguista, olhar todas as possíveis mutações de relações dentro de um sistema de parentesco como um todo, permitindo-lhe isolar "o átomo de parentesco" num conjunto complexo de consanguinidade, filiação e descendência, dissolvendo o problema numa rede de relações - manobra intelectual a qual o antropólogo recorrerá sempre, do parentesco ao campo das religiões e dos mitos. Eis o feito de As Estruturas Elementares do Parentesco, livro extremamente ambicioso que cobria uma vastíssima área na Ásia, Sibéria e Oceania, no qual aqueles sistemas elementares predominavam, tratando exclusivamente de modelos e não de realidades empíricas, como mais tarde ele o reconhecerá.

Logo depois, Lévi-Strauss já se aventurava com seus prodigiosos conhecimentos etnográficos nos territórios da cibernética e da matemática, qual engenheiro-chefe de um enorme mecanismo, no qual lhe interessavam as articulações de seus componentes e seu ritmo. Ele não estava muito interessado nas funções do mecanismo nem nos objetivos: "Como nas esculturas móveis da fonte de Nikki de Saint Phalle, no Centro Pompidou,[ EM PARIS] com suas mangueiras jorrando água e rodas girando, a máquina cultural de Lévi-Strauss era um mecanismo estético que funcionava, mas sem um fim evidente."

Após o lançamento de As Estruturas..., a carreira de Lévi-Strauss deslancharia, ainda que por duas vezes ele não tenha sido eleito para o Collège de France, a instituição sonho supremo da elite acadêmica francesa que não confere títulos nem administra exames. A rejeição lhe permitiu um intervalo de colaboração com a Unesco - uma missão na Índia e no Paquistão, da qual trará observações extremamente azedas. Publicou o seminal Raça e História que, com Tristes Trópicos, devassa para o grande público a ideia central da antropologia do século 20, constata Wilcken, segundo a qual toda a humanidade compartilha uma unidade psicológica fundamental. Na sequência, seria nomeado secretário-geral do Conselho Internacional da Ciência Social, cujo trabalho para Lévi-Strauss era "dar a impressão que uma organização sem objetivo ou função tinha alguma razão para existir".

Tristes Trópicos, de 1955, é o livro mais revelador do poeta no laboratório, o reencontro com as obras literárias que algumas vezes tentara e jamais terminara. A estrutura é profundamente original e não é, a rigor, a de um livro de memórias: "Je hais les voyages et les explorateurs" (Eu odeio as viagens e os exploradores), uma negação do que Lévi-Strauss fizera até então - viajar e explorar o mundo. O livro é quase uma boîte-en-valise, uma caixa museu-numa-valise, como as de Marcel Duchamp, em que se acomoda no trabalho todas as partes de sua obra até então. Ali irrompe fulgurante a experiência brasileira, regressa o admirável mundo novo que desvendara nos anos 1930, a vida em São Paulo banhada em saudade e ironia, o maravilhamento das expedições e o ressurgimento dos bororos, dos caduveos, nambiquaras, registro em que o científico e o afetivo se entremeiam, com seus desenhos e fotos. É a prova viva do que Lévi-Strauss reconhecerá aos 97 anos de idade: "O Brasil foi a mais importante experiência de minha vida, não somente pela distância remota, pelo contraste, mas porque ela determinou minha carreira. Eu tenho com o país uma dívida profunda".

Depois de Tristes Trópicos, ele seria finalmente eleito para o Collège de France, lamentando que sua cadeira de antropologia não tivesse sido criada centenas de anos antes, quando os franceses Jean de Léry e André Thevet estavam escrevendo sobre os tupis no Brasil. Seguiram-se os três volumes das Mythologiques, a grande vitrine do estruturalismo, uma tentativa, como diz o primeiro livro, "de mostrar como categorias empíricas - as do cru e do cozido, do fresco e do podre, do molhado e do queimado, etc... - podem ser usadas como instrumentos conceituais para elaborar ideias e combiná-las em proposições". Viriam depois várias obras incontornáveis, apesar das contestações de outros antropólogos a seu método e a queda em desfavor do estruturalismo - com o que ele pouco se importava. Lévi-Strauss entrou na Academia Francesa como se a espada cerimonial, parte do uniforme de acadêmico, fosse uma borduna dos bororos.

A ligação e o interesse com o País jamais se apagaram, como demonstram os livros de fotografias Saudades do Brasil (1994) e Saudades de São Paulo (1996). Mas somente voltaria aqui uma única vez, em 1985, na comitiva de uma visita de cinco dias do presidente Mitterrand. E, numa viagem de avião organizada pelo Estado, sobrevoou em Mato Grosso o local de uma aldeia bororo que pesquisara nos anos 1930. Com melancolia felliniana, Wilcken descreve que, chegando à área, "Lévi-Strauss pôde apenas perceber um grupo de choupanas bororos numa clareira, quando o piloto lhe diz que, embora pudesse pousar, ele não conseguiria decolar de novo. Era uma outra volta abortada ao passado. O contato de Lévi-Strauss com os bororos seria apenas das alturas, quando ele tentava ver a aldeia lá embaixo". Sem mais nada enxergar.

...

*PAULO SÉRGIO PINHEIRO É PROFESSOR ADJUNTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA BROWN UNIVERSITY (EUA) E PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP

  

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