Sertanismo fantástico 10/03/2012
- Júlio Maria - O Estado de S.Paulo
Se diziam que o velho era do além, Paulo Freire queria ver de perto. Um deles, Andalécio, tocava uma viola de chorar. Segundo o povo da região, um legítimo caso de negócio ilícito com o sobrenatural nas encruzilhadas de Urucuia, nos matos de Minas Gerais. Os olhos de Paulo vidravam com as histórias. Andalécio, do dia para a noite, passou a engolir a viola, tocar de um jeito que ninguém acreditava. Eram os dedos mais rápidos do Norte de Minas, até o coisa-ruim vir lhe cobrar a conta. Sem explicação, o homem largou a viola, fechou as janelas de casa com tábuas e passou a gritar hinos de louvor a Deus que se ouviam da esquina. A mãe morreu primeiro, ele se foi logo depois. Freire não se convencia em só ouvir causos, queria ser testemunha. Quando soube que outro tocador parecia ter o mesmo histórico de tratos inexplicáveis, foi atrás. "Você vai lá mesmo? Então toma cuidado porque uma vez a casa dele pegou fogo e só sobrou a viola e um livro de São Cipriano", alertou um violeiro amigo. Paulo foi conhecer o velhinho. Era um cara bacana que tocou para ele com entusiasmo e lhe ofereceu pinga e um pedaço de carne. E como quem procura acha... "Tá gostando menino?" "Tô." "É fígado de bicho-preguiça."
No dia seguinte, culpa do fígado ou não, Paulo tinha os olhos escuros de hepatite. Curado, voltou para a mesma região anos depois, mas sofreu um apagão nas memórias. Não se lembra nem do nome do velho nem do lugar onde ficava a casa. Só tem certeza de aquilo que conta hoje aconteceu de verdade verdadeira.
Paulo, violeiro filho do educador Roberto Freire, nunca deixou de revirar violas em busca de causos e sons. Um nunca vem sem o outro. Ao lado de Roberto Corrêa, músico autoridade nas 12 cordas e autor do método A Arte de Pontear Viola, e da coordenadora Juliana Saenger, caminha com um projeto que tem rastreado o instrumento pelo País desde sua primeira edição, em 2010. Um concurso chamado Voa Viola, em que instrumentistas do País todo mandam seus materiais gravados para que um júri selecione 24 nomes. Desses, 12 são escolhidos em uma votação popular no site do projeto. Cada voto é um 'aplauso'. Os 12 nomes farão cada um três shows pelo País, em teatros grandes em que muitos nunca pisaram e ao lado de gente renomada. Os selecionados desta edição terão como parceiros, até agora confirmados, Chico Cesar em Manaus; Cida Moreira e Passoca em Porto Alegre; e Orquestra do Estado do Mato Grosso em Cuiabá. São Paulo, por já ter sediado shows em 2010, ficou de fora desta vez. O volume de inscrições e suas origens vão criando por si um catálogo informal. Este ano foram 339 inscritos de 140 cidades e 22 Estados. "O uso da viola tem crescido de 20 anos para cá", diz Roberto Corrêa.
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O trabalho tem servido para perceber a quantas anda a cultura da viola do País, algo que vai além da música. As notícias são boas e ruins. As boas: a viola garante sua renovação justamente em frentes que antes não ousava entrar, como o jazz, o rock e o choro, ou por preconceito dos jovens que a viam como coisa de caipira ou dos sertanejos que a tinham como patrimônio exclusivamente seus. Paulo Freire lembra da frase do violeiro Renato Andrade, morto há três anos, um dos primeiros homens que levaram o instrumento para as salas de concerto. "Viola é que nem mortadela, todo mundo gosta, mas tem vergonha de comer na frente dos outros." A viola está viva e atuante, e um fato é que poucos sabem do que ela é capaz.
No calor das terras do Jalapão, no interior do Tocantins, em uma comunidade quilombola criada por ex-escravos fugidos da Bahia, a viola que se conhece é a de Buriti, uma espécie de palmeira do cerrado. O instrumento rudimentar de quatro cordas e sem traste é tocado em uma afinação parecida com o que os violeiros tradicionais chamam de Rio Abaixo. Sem grandes recursos, cria uma música de ares rudimentares e pouco virtuosismo, mas capaz de transportar seus ouvintes para algum canto longe das cidades. A dupla descoberta no Voa Viola de 2010, Tradição do Jalapão, foi inscrita por motoqueiros que trafegavam pela região em suas Harley-Davidson. Ao avistarem os jovens tocando aquela peça paleolítica, filmaram e mandaram para o site de Paulo Freire. Devidamente "bombados" nas redes sociais pelos padrinhos motoqueiros, foram escolhidos para fazerem três shows em 2010.
Agora, o alerta: ninguém garante que a cultura da viola sobreviva a tanta modernidade. Mestres como Seu Manelim, 76 anos, uma espécie de John Lee Hooker de Urucuia - com três causos de um gênero que poderia ser batizado de sertanismo fantástico para cada corda de seu instrumento -, é uma figura em extinção, um patrimônio feito de material não renovável. Se alguém assumirá seu posto com a mesma sabedoria nas 12 cordas e o mesmo repertório de causos, só muitos anos dirão. Ouvir sua viola pressupõe conhecer as matas, o som do pica-pau, os passos do grilo e da tartaruga. Cada animal que observa ganha um toque inspirado em seus ruídos. Um dos temas impagáveis de Manelim retrata a corrida do sapo com o veado. Violeiro que estiver distante disso pode fazer boa música de viola, mas sua viola correrá o risco de não ter alma.
Criado pela patroa de seus pais, uma violeira nata, Manelim não gosta dessa conversa de pacto. Diz que o dom é a prática que traz. Mas sua história, contada assim, em resumo, lembra a dos violeiros que passam a destrinchar instrumentos por alguma obra do além. Manelim, Manoel de Oliveira, era criança quando observava estonteado a mulher que o criava tocando viola em sua casa. Quando ela saía, o menino não resistia. A moça voltava e a viola estava desafinada. Ela ficava fula. Um dia, Manelim foi flagrado com o instrumento no colo. Para impedir que a usasse de novo, a violeira passou a deixar o instrumento desafinado. Mas os ouvidos de Manelim já tinham aprendido o som de cada corda. Ela desafinava, ele afinava. A violeira se deu por vencida e o menino passou a tirar tudo de ouvido. Só de afinações, hoje, sabe oito.
Dos pactos que tem notícia em sua região fala com parcimônia. Ele mesmo nunca viu o coisa-ruim, só ouviu falar. Um homem evangélico dizia que, quando tocava, colocava o instrumento sobre a mesa e suas cordas se mexiam sozinhas. "É a história que eu vejo falar", diz em um vídeo no YouTube. E logo em seguida narra outra obra-prima do sertanismo fantástico.
A mulher desceu na fonte para apanhar água. Foi lá mais um menininho, seu filho. Aí escutou aquele som de viola bonito. Parou, era o capeta tocando que nem ele só. "Mãe", diz o menino, "Olha o pé dele!" "Quieto menino." "Mãe, ele tem chifre." "Quieto menino." "Mas mãe, ele tem chifre." "Quieto, cada qual como Deus o fez." E o capeta respondeu: "Isso mesmo dona, cada qual como Deus o fez."