Pesquisa de Miguel Nicolelis dá a largada para criar internet cerebral 01/03/2013
- Guilherme Rosa - Veja.com
Neurocientista conseguiu fazer com que ratos transmitissem informações entre seus cérebros a milhares de quilômetros entre si, criando a primeira interface cérebro-cérebro. É o passo inicial para criar, no futuro, uma rede capaz de ligar as pessoas por meio do pensamento.
Em 2011, no livro Muito Além do Nosso Eu: A Nova Neurociência Que Une Cérebros e Máquinas e Como Ela Pode Mudar Nossas Vidas (Ed. Cia. das Letras), o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis propõe o conceito de brainet, uma avançada rede pela qual seria possível se comunicar através de ondas cerebrais com outras pessoas, uma espécie de "internet cerebral".
Ontem, ele anunciou o primeiro passo para que isso um dia se torne realidade. Em sua pesquisa mais recente, sua equipe conseguiu ligar eletronicamente os cérebros de dois ratos. Após terem microeletrodos instalados em suas cabeças, os animais passaram a se comunicar por meio da transmissão dos sinais elétricos produzidos por seus neurônios, e colaboraram para a resolução de tarefas mesmo quando não estavam na presença um do outro.
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Desse modo, os cientistas conseguiram criar, pela primeira vez, uma interface cérebro-cérebro. O estudo, realizado na Universidade Duke, nos Estados Unidos, e no Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), foi publicado na revista Scientific Reports.
Até agora, as pesquisas desenvolvidas por Miguel Nicolelis se voltavam principalmente ao estudo de novas interfaces cérebro-máquina-cérebro. Elas consistiam, basicamente, em captar a atividade elétrica no cérebro de um animal e traduzi-la para comandos eletrônicos, que podiam ser lidos por artefatos robóticos. O pesquisador havia conseguido, por exemplo, fazer um macaco controlar uma mão virtual apenas com o seu pensamento.
Segundo Nicolelis, o desenvolvimento de uma interface cérebro-cérebro representa a progressão lógica dessas pesquisas. "Em nossos laboratórios, nós buscamos descobrir os limites do cérebro. Já o fizemos se comunicar com máquinas, com avatares em computador e até com sensores de luz infravermelha. Desta vez, nós tentamos descobrir se o cérebro é capaz de assimilar os sentidos de outro corpo", disse Nicolelis em entrevista ao site de VEJA.
Para testar a hipótese, os pesquisadores realizaram uma série de três experimentos em ratos. No primeiro, os animais foram treinados para realizar uma tarefa simples: eles eram colocados em um compartimento de frente para duas alavancas, e deveriam escolher qual delas pressionar de acordo com uma luz que acendia sobre ela. Se escolhessem a correta, ganhavam um gole de água como recompensa.
Depois que os animais aprenderam a realizar a tarefa, os pesquisadores inseriram microeletrodos em seus cérebros, na região do cérebro que processa as informações motoras (córtex motor), e os separam em dois grupos: codificadores e decodificadores. Os primeiros teriam a atividade elétrica de seu cérebro registrada durante a execução da tarefa e transmitida adiante. Os segundos seriam treinados para receber e compreender essa informação, implantada diretamente em seu córtex motor.
São sensores capazes de captar a atividade elétrica dos neurônios, decodificá-la, remetê-la a artefatos robóticos e depois de volta para o cérebro por meio de sinais visuais, táteis ou elétricos. Na prática, as ICMCs transformam os pensamentos em comandos digitais que as máquinas podem entender.
Os decodificadores foram colocados em um compartimento parecido com o usado anteriormente, com duas alavancas, mas sem uma luz capaz de guiá-los para a escolha correta — eles só contavam com as informações transmitidas a seu cérebro para resolver a tarefa. Durante o treinamento, quando a estimulação elétrica era criada pelos pesquisadores e não pelo outro rato, os decodificadores conseguiram traduzir os sinais de forma correta em 78% das vezes. Já durante o experimento, recebendo as informações diretamente do cérebro do outro animal, eles pressionaram a alavanca certa em 70% das vezes. A performance da nova interface cérebro-cérebro foi um pouco pior do que a estimulação cerebral direta pois uma série de fatores afetava a clareza com que os sinais cerebrais eram transmitidos a partir do primeiro rato, como sua concentraçao na tarefa e coordenação de movimentos. Mesmo assim, os cientistas haviam provado a viabilidade da nova tecnologia.
Segundo os pesquisadores, a comunicação entre os cérebros não se deu apenas em um sentido, mas foi uma via de mão dupla. Como o rato codificador só recebia uma recompensa completa se o outro realizasse a tarefa de forma correta, houve o estabelecimento de uma colaboração comportamental entre os animais. "O codificador não gostava quando o outro rato apertava a alavanca errada — ele queria a recompensa. Por isso, na tentativa seguinte ele mudava seu comportamento: prestava mais atenção na tarefa, usava movimentos mais precisos e, assim, seus sinais cerebrais ficavam mais claros. O comportamento de um animal influenciava o outro, eles estavam se comunicando", diz Nicolelis.
Tato à distância
No segundo experimento, os pesquisadores testaram a possibilidade de transmitir entre os cérebros dos animais não só informações motoras, mas táteis. Eles treinaram os ratos para usar seus bigodes para distinguir entre uma abertura estreita ou larga em sua jaula. Se fosse estreita, os ratos tinham que colocar o nariz em um sensor ao lado esquerdo da abertura. Se fosse larga, eles deveriam colocar o nariz no sensor ao lado direito. Quando acertavam, eles eram recompensados com goles de água.
Depois de treinados, os animais foram novamente divididos entre codificadores e decodificadores. Os decodificadores foram colocados em uma jaula sem a abertura, e deviam interpretar os sinais recebidos em seu cérebro para saber que sensor pressionar. Dessa vez, no entanto, os pesquisadores instalaram os microeletrodos no córtex tátil de cada animal. O sinal transmitido para o decodificador não dizia mais respeito à movimentação, mas à percepção do bigode do outro rato. Após a realização dos experimentos, os pesquisadores descobriram que o índice de sucesso na transmissão da informação foi de 65%, maior do que seria esperado pelo simples acaso.
Ao analisar os neurônios dos ratos decodificadores, os pesquisadores descobriram que eles ainda eram capazes de responder às próprias sensações táteis, mas, ao mesmo tempo, tinham adquirido a capacidade de perceber as sensações alheias. "O cérebro do rato começou a representar não só os próprios bigodes, mas também os bigodes do outro animal. Nós criamos a representação de um outro corpo em seu cérebro, o que foi totalmente inesperado", diz Nicolelis.
Para testar os limites da transmissão cérebro-cérebro, os pesquisadores replicaram a experiência com ratos separados por milhares de quilômetros. Os codificadores foram colocados em compartimentos no Instituto Internacional de Neurociências de Natal e os decodificadores na Universidade Duke, em Durham, nos Estados Unidos. Para transmitir os sinais elétricos entre os animais, foi usada uma simples conexão de internet. Mesmo sob essas condições extremas, a comunicação foi considerada bem-sucedida. "Apesar de os animais estarem em continentes diferentes, com a transmissão ruidosa resultante e atrasos de sinal, eles ainda puderam se comunicar", diz Miguel Pais Vieira, pesquisador da Universidade Duke e primeiro autor do estudo. "Isso sugere que, no futuro, poderemos criar uma rede de cérebros de animais distribuídos em vários locais diferentes."
Rede mundial de cérebros — Por enquanto, os pesquisadores foram capazes de transmitir somente informações muito simples entre os cérebros, envolvendo apenas algumas dezenas de neurônios. No entanto, Miguel Nicolelis diz que, com o aumento da capacidade tecnológica, as trocas tendem a ser cada vez mais complexas, podendo levar ao desenvolvimento de computadores orgânicos. "Se pusermos mais animais interagindo dentro dessa rede, podemos criar um sistema computacional formado por múltiplos cérebros, com uma arquitetura orgânica."
Hoje, no entanto, a tecnologia está em seus primeiros passos e deve levar décadas, ou até séculos, para que as previsões se confirmem. Por enquanto, o campo da interface cérebro-cérebro está em pleno desenvolvimento — Nicolelis, por exemplo, já testa a técnica em macacos —, e as possibilidades abertas são inúmeras. "Essa comunicação direta entre os cérebros é completamente inédita, em qualquer espécie. Ninguém sabe como esse tipo de interface pode acontecer, que símbolos podem ser usados. Nós estamos criando um novo tipo de comunicação, que ninguém sabe onde poderá nos levar", diz.