O marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) pode ser descrito de forma simplista como um índio positivista.
Nascido em Mato Grosso e descendente de indígenas bororos e terenas por parte de mãe, tornou-se militante do positivismo do sociólogo francês Augusto Comte, como muitos companheiros do Exército no final do século 19.
Tanto prezava as raízes nativas como acreditava no poder da ciência para a evolução humana.
A combinação entre traços arcaicos e modernos moldou sua personalidade racionalista e tolerante.
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As características pessoais de Rondon ajudaram a definir o vetor do progresso da República.
Além disso, colaborou no desenvolvimento do saber científico no início da formação do País.
Uma série de pesquisas organizadas pelas historiadoras Lorelai Kury e Magali Romero Sá, professoras do programa de História da Ciência e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, traz revelações sobre o papel de Rondon e seu batalhão de engenheiros e cientistas na produção de conhecimento sobre o Brasil.
As investigações foram reunidas no volume “Rondon: Inventários do Brasil, 1900-1930”, lançado pelo Andrea Jakobsson Estúdio.
O volume traz nove ensaios de especialistas sobre as expedições e apresenta um vasto acervo fotográfico e documental.
“Rondon começou a ocupação do território virgem do Centro-Oeste e Amazonas”, afirma Lorelay.
“Ele usou o saber para ocupar. Foi assim que entrou em contato com centenas de tribos indígenas amistosamente e criou formas de protegê-las, com a fundação do Serviço de Proteção ao Índio em 1910, que em 1967 viraria a Funai.” O livro, diz ela, pode divulgar o legado de um homem que os jovens de hoje desconhecem. “Ele foi um desbravador, não um explorador.”
No final do século 19, Rondon juntou-se aos projetos do Exército no sentido de organizar campanhas militares para defender o território e construir infraestrutura de comunicações e transportes que unisse a nação.
A missão contava com o apoio das mais recentes aquisições tecnológicas.
A principal era o telégrafo.
Embora a versão sem fio já fosse aplicada à comunicação naval, as redes de fios telegráficos ainda constituíam o meio mais eficaz de interligar uma região selvagem como o do Centro Oeste e da Amazônia brasileira.
Era mais fácil instalar fios com suas estações através do território desconhecido do que, como em outros tempos, derrubar árvores e abrir picadas.
Assim, a Comissão Rondon começou a avançar sobre a selva e a entrar em contato com povos primitivos não pela violência dos tempos coloniais, mas por meio de uma tecnologia moderna.
A Comissão Rondon instalou entre 1900 e 1915, 583 quilômetros de linhas entre Mato Grosso e Amazonas.
“A instalação do telégrafo consistia em um objetivo estratégico”, diz Lorelay.
“Mas trazia consigo uma série de outras missões para desbravar e integrar o País.”
“Ele usou o saber para ocupar. Foi um desbravador, não um explorador ” Lorelay Kury, historiadora
Para integrar as campanhas, Rondon convidou engenheiros, cartógrafos, botânicos, zoólogos e taxidermistas.
Eles identificaram rios, regiões e aldeias, traçaram rotas e registraram, pela primeira vez em filmes e fotografias, os rituais indígenas.
“Por ser positivista, incentivou os ritos dos índios e os convenceu a adotar novos hábitos, como o hasteamento da bandeira, porque acreditava que o índio estava destinado a vigiar o território”, diz Lorelay.
“Tentou rechaçar o avanço dos missionários na catequese dos índios, porque via na religião um estágio ultrapassado na marcha da civilização. Os índios pulariam essa etapa.”
Rondon e seus comandados também recolheram amostras de plantas e animais que hoje compõem um dos maiores tesouros científicos do Brasil, depositados no Museu Histórico Nacional.
“Rondon e seus homens realizaram o mapeamento mais completo da biodiversidade daquelas regiões do Brasil”, afirma Magali Romero Sá “Esse material tem importância universal.”
O marechal tinha consciência de que suas expedições ganhariam repercussão mundial.
Por isso, fez questão de acompanhar o ex-presidente americano Theodore Roosevelt (1858-1919) em eviagens pela mata.
Por duas vezes, em 1925 e 1957, foi indicado para o prêmio Nobel da Paz, a primeira por iniciativa do físico Albert Einstein.
Não ganhou o Nobel, mas outras honrarias, como o título póstumo que faz jus a seu legado:
“Patrono da Arma de Comunicações do Exército Brasileiro”.
Afinal, Rondon usou a comunicação como arma, do bem.