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A doença do Brasil é o ódio de classe
17/08/2018 - Vicente Vilardaga - ISTOÉ

Doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e professor da UFABC, Jessé Souza, 58 anos, é um dos mais polêmicos intelectuais brasileiros da atualidade.

Seu último livro, “A Elite do Atraso — da escravidão à Lava Jato” (Editora Leya), tem se mantido no topo das listas dos mais vendidos há oito meses.

Nele, o autor defende que o problema principal do Brasil não é a corrupção no Estado, mas a desigualdade, herança direta da escravidão.


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O livro é também uma resposta crítica ao clássico “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, e ao conceito de homem cordial — o brasileiro patrimonialista que não vê distinção entre o público e o privado.

Para Souza, o patrimonialismo é um problema secundário.

“Mais de 50% dos brasileiros exercem atividades semi-qualificadas. E essas classes populares são odiadas e desprezadas, como os escravos eram”, disse Souza nesta entrevista à ISTOÉ.

Depois de relançar “Subcidadania Brasileira: para entender o País além do jeitinho brasileiro”, de 2003, o autor agora se debruça sobre os conflitos e privilégios da classe média, tema de seu próximo livro, “O espelho da classe média brasileira” (Editora Sextante), previsto para outubro.

A ENTREVISTA

O Brasil vive hoje uma crise profunda. Ela tem uma causa específica?

— A característica dessa crise tem a ver com o fato de o Brasil até hoje não ter conseguido incluir a maior parte da sua população nas benesses do mundo moderno. O problema é a desigualdade. Obviamente esse é o grande ponto. E tem uma mentira aí: a que diz que a grande questão que impede que o Brasil seja uma nação desenvolvida e rica, como as nações europeias ou a norte-americana, é a corrupção do Estado. Essa é a principal mentira.

Isso foi construído por ideias, por intelectuais, aqui em São Paulo, desde a década de 1930, quando a elite local ficou sem o poder político. Essa elite já era a mais forte, era proprietária das indústrias, das fazendas de café — a semente do que hoje seria o agronegócio. Sem poder político, essa elite precisava criminalizar e estigmatizar o Estado, sobre o qual havia perdido o controle.

Mas o brasileiro não é, de um modo geral, patrimonialista, sempre misturando o público e o privado?

— É claro que essa história de patrimonialismo tem um grão de verdade. O grão de verdade é que se rouba no Estado também, ainda que este roubo seja a gorjeta dos donos do mercado. Mas todo o resto é mentira e essas abstrações jurídicas do privado e do público não explicam coisa alguma.

A gente está montando uma concepção vira-lata sobre o nosso próprio povo, agindo contra nós mesmos. Olha como nossos políticos são corruptos, então vamos logo entregar a Petrobras de mão beijada para as petroleiras europeias e americanas porque os estrangeiros são honestos. Basicamente a coisa funciona assim.

Então a corrupção não é nosso problema principal?

— A corrupção no Estado nunca foi o nosso problema principal. É claro que existe, é claro que se rouba no Estado. Mas se você compara a merreca que a Lava-Jato diz ter recuperado para os cofres públicos com o que realmente se rouba no mercado, é ridículo. Cinco anos passando um scanner na corrupção da Petrobras e você recupera menos do que a empresa pagou de multa para os americanos.

As isenções fiscais para latifundiários somam dezenas de bilhões todos os anos. Para os bancos ainda mais. Sem contar a dívida pública, Selic etc. A corrupção feita pela elite de proprietários, pelo agronegócio e pelos bancos e grandes empresas é mil vezes maior, é um milhão de vezes maior do que o roubo do aviãozinho do tráfico, que é como eu chamo o roubo do político.

“A elite do atraso” afirma que a Lava Jato é um embuste. Por quê?

— Embuste total. Porque ela serve exatamente para esse tipo de coisa, para denunciar esse roubo da política para tornar invisível o grande assalto do mercado e dos bancos.

Por exemplo, quando o Palocci quis falar dos crimes do mercado financeiro, isso não interessa, não interessa ao mercado. Mas os crimes do mercado financeiro são os mais importantes.

Isso explica que os bancos tenham os maiores lucros de sua história, com um juro de 6,5% ao ano e o país na maior miséria.

Existe a ideia de que o país sairá melhor da Lava Jato, com uma diminuição da corrupção sistêmica.

— Eu não vejo nenhum aspecto positivo na Lava Jato. Inclusive, a maior parte das pessoas, mesmo de esquerda, via de modo ambivalente a Lava Jato, achava que aquilo poderia ter algum aspecto positivo, até porque a esquerda também é dominada por essa coisa do patrimonialismo. Eu não concordo. A corrupção sistêmica esta no mercado financeiro.

A esquerda perdeu o atributo da honestidade?

— Eu vejo de outro modo. Eu acho que o monopólio da honestidade ninguém tem. É um negócio absurdo achar que porque é de esquerda você tem o monopólio da virtude. Esse é um negócio idiota.

O problema é que o tema da corrupção entre nós e agora na América Latina vira uma histeria. A Alemanha ou os Estados Unidos combatem a corrupção de modo cotidiano, sóbrio, é um crime como outro qualquer.

A escravidão persiste no Brasil?

— Ela persiste de novas formas. Ela persiste no sentido de que você tem aqui uma multidão, mais de 50% da população brasileira, exercendo atividade semiqualificada. É trabalho manual, é trabalho sem grande incorporação de conhecimento, exatamente como o trabalho escravo. Essas classes populares são odiadas e desprezadas, como os escravos eram. Você pode matar um pobre no Brasil, que não acontece nada.

A polícia mata com requintes de crueldade e ninguém se comove porque os pobres são percebidos de modo desumanizado, como os escravos eram. A escravidão perpassa o núcleo da sociedade brasileira. E boa parte da classe média tem preconceitos de senhor de escravo e da elite com relação a esse povo.

O que eu tento mostrar é como essa escravidão se torna a base e o centro de tudo que a gente está vivendo hoje. Nós somos filhos da escravidão, isso nunca foi percebido. É como se fosse uma coisa que aconteceu há muito tempo e não tenha mais nada a ver hoje. É o contrário. A escravidão continua. Para mim, essa desigualdade doente de hoje vem da escravidão.

A desigualdade é que cria o subcidadão brasileiro?

— O Brasil é um país doente, patologicamente doente pelo ódio de classe. Isso é o mais característico do Brasil: o ódio patológico ao pobre. É a doença que nós temos.

A gente nunca assumiu a autocrítica de que somos filhos da escravidão, com todas as doenças que a escravidão traz: a desigualdade, a humilhação, o prazer sádico na humilhação diante dos mais frágeis, o esquecimento e o abandono da maior parte da população. Esse é o grande problema brasileiro. O resto é bobagem.

O complexo de vira-lata é uma dessas bobagens?

— Essa história de vira-lata está ligada ao tema da corrupção como sendo a questão mais importante, obviamente. Quem é o vira-lata?

É o brasileiro que supostamente herda de Portugal o “vírus cultural” da corrupção, como se fosse uma singularidade nossa e que se imagina, portanto, como inferior em relação aos europeus e americanos tidos como “honestos”.

Esse é o “vira-latismo” brasileiro montado pela elite e pelos intelectuais cooptados por ela. Foi dito aos brasileiros que eles são marcados desde o berço pela corrupção. Imagina uma loucura dessas. Claro que você ouviu isso desde os cinco anos na escola, o seu pai contou isso e aí você acredita nessa bobagem.

Isso tem a ver com o tema da corrupção só no Estado, claro. Para você montar esse tema da corrupção e aí criminalizar o Estado e a política, quando interessar ao mercado e seus donos. Esse é o ponto. É para isso que a história de vira-lata serve.

E qual é a posição da classe média nessa história?

— A classe média é a classe do privilégio. Qual é o privilégio da classe média? O capitalismo tem dois grandes capitais. O dinheiro, obviamente, o capital econômico. E o conhecimento. Não tem nada no capitalismo que se faça sem conhecimento, tão importante como o dinheiro. A produtividade do capitalismo depende do conhecimento, da ciência, da tecnologia.

Para exercer qualquer função no Estado ou no mercado você precisa ter conhecimento incorporado. O que explicita a gênese da desigualdade é a reprodução de privilégios, desde a família. A reprodução de privilégios que é feita na classe alta, ou seja, na elite de proprietários, é a reprodução da sua propriedade por amizades, casamentos e relações pessoais.

Na classe média você reproduz outro privilégio, que é o conhecimento valorizado, mais invisível que o dinheiro, o qual exige disciplina, capacidade de concentração e pensamento abstrato, que são pré-condições recebidas pelo indivíduo da classe média. É o que as classes populares não têm.

Para ter o conhecimento valorizado você precisa também que seu pai tenha algum dinheiro para pagar um colégio bom e para você não precisar trabalhar. Entre nós, as classes populares começam a trabalhar com 12 ou 13 anos.

O brasileiro se coloca numa posição de inferioridade?

— Existe um racismo e o racismo não é só a cor da pele. O que é o racismo? É você separar a humanidade em humanos e sub-humanos. É essa operação que faz o racismo.

A gente só vê a questão da cor da pele porque é a mais visível. Mas você tem as culturas que são tidas como superiores, como humanas, e as das classes populares, vistas como sub-humanas.

“A elite do atraso” foi tema do enredo da escola de samba Paraíso do Tuiuti. O que você achou da utilização de seu livro para a realização de um desfile de Carnaval?

— Fiquei muito contente. Foi uma das minhas maiores alegrias como pesquisador. É claro que outros autores também eram a base do desfile, mas eram autores que só tocavam no período da escravidão.

O desfile teve dois passos, duas épocas, a escravidão como um fato histórico e depois como a escravidão vem persistindo até hoje. E como fato histórico ele cita vários autores.

Mas o único livro que trata de como a escravidão vem até hoje era o meu. E obviamente isso me deixou muito contente, muito orgulhoso, porque isso é um sonho de todo intelectual engajado como eu.

Você parece fazer uma espécie de sociologia da fúria. Concorda com essa ideia?

— Eu concordo, claro. A raiva é a minha energia, mas o que eu fiz foi transformar essa raiva em indignação. Não é uma raiva de você sair por aí batendo nas pessoas, mas é a indignação de um discurso e de uma intelectualidade que sempre serviu aos interesses dos poderosos.

Não se trata de usar o seu conhecimento como o rico usa o dinheiro, como enfeite. O interesse é muito maior do que isso.

Conhecimento é uma arma extremamente importante. O conhecimento, para mim, é uma arma política. Ele permite chacoalhar, dizer certas coisas para que as pessoas possam se proteger melhor e não ficarem tão indefesas.


  

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