“Garrincha, eu me lembro” 29/10/2010
- Marcos Caetano*
A caminho de Niigata – cidade que abrigou a partida entre Inglaterra e Dinamarca pela Copa do Mundo de 2002 –, em meio a milhares de ingleses entusiasmados que tingiam de vermelho sangue as ruas e estações ferroviárias, um torcedor chamou minha atenção. Era um senegalês, com presumíveis 60 anos de idade. Na verdade, seria impossível não notá-lo, antes de mais nada por conta de sua gigantesca figura de ciclope. Além disso, o sujeito era o retrato vivo da euforia de seu país depois da inacreditável vitória sobre os franceses, então campeões do mundo, logo na partida de abertura. Mas o que mais me enterneceu, em relação ao torcedor africano, foi uma tabuleta que ele carregava para todos os lados, qual fosse um troféu. A tabuleta não fazia referência a Senegal, nem mesmo àquela Copa do Mundo. Ela trazia apenas o desenho de uma bandeira do Brasil e uma mensagem curta e tocante: “Garrincha, eu me lembro”.
Durante uma Copa do Mundo histórica, da qual Senegal participava pela primeira vez, dias depois da inesquecível vitória sobre os antigos colonizadores, com sua seleção já classificada para as quartas-de-final, em meio a tudo isso, era em Garrincha que o torcedor usando roupas tribais e enfeitado por milhares de argolas pensava. Ao ver aquela tabuleta, eu também esqueci a Copa do Mundo por alguns instantes para pensar na doce e santificada figura de Mané Garrincha, que vinte anos antes havia se despedido da vida, da bola, dos gramados, dos joões, das caneladas dos joões, da cachacinha e das mulheres. Haviam se passado vinte anos – e agora já são quase trinta – desde a data em que o mundo deu adeus às tardes de futebol enfeitadas pelos dribles do mais inventivo jogador da história. Vinte anos sem qualquer grande homenagem por parte da CBF ou do Botafogo – clube que amou, defendeu e transformou em legenda.
O nosso anjo das pernas tortas, que em linhas tão certas escreveu as mais belas páginas do futebol brasileiro, se acostumou, ainda em vida, a ser esquecido pelos dirigentes. Pior para eles, pobres de espírito. Garrincha não se importaria com isso. O que sempre encheu seu coração foram mesmo as homenagens do homem simples, dos desdentados da geral, dos amantes do futebol-arte. As lembranças de Garrincha chegam à minha mente sempre em preto e branco. Como a linda camisa do Botafogo, ou como os melhores filmes, documentários e fotografias que o mundo já produziu. Assim como os diretores da Nouvelle Vague, Garrincha também criou suas obras-primas em preto e branco.
PUBLICIDADE
Existe pelo menos um brasileiro que não tem qualquer problema em afirmar que Garrincha foi o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Seu nome é João Moreira Salles, grande amigo. “Mas esse é um botafoguense roxo” – se apressarão em denunciar alguns. “Como documentarista e homem de imprensa, certamente percebe as coisas com objetividade” – defenderão outros. Não importa. O que importa é que o João dedicou umas boas horas de sua existência à tentativa de me convencer da superioridade inquestionável e definitiva de Garrincha sobre o Rei Pelé.
FOI O MAIOR. E PONTO!
Sei que Pelé foi grandioso e inatingível como atleta. Mas Pelé – e isso, confesso, me incomoda um pouco – foi perfeito demais. Será que o futebol também se torna mais sublime quando, através de formas e caminhos imperfeitos, obtém a harmonia impensada? Será que, como nas grandes obras da literatura, não é no mistério do não contado, na magia das palavras não ditas, que reside a verdadeira arte do esporte? Quando penso em Garrincha, recordo-me da história do Paulo Francis com o Picasso. O grande e saudoso intelectual brasileiro passou a vida criticando, aqui e ali, o trabalho do gênio espanhol. Mas um dia, poucos anos antes de morrer, o Francis escreveu assim em sua coluna: “Picasso foi o maior pintor. E ponto”. Uma maneira direta e definitiva, bem ao seu estilo, de encerrar a questão. Em seus dribles, Garrincha era como Picasso. Ele jamais pintaria o teto da Capela Sistina, mas poderia perfeitamente afirmar, como o mestre catalão: “Eu não procuro, eu encontro”.
Não sei não, mas acho que um dia, quando estiver bem velhinho, sou até capaz de dar o braço a torcer e escrever assim: “Garrincha foi o maior jogador. E ponto”. Por enquanto, fico feliz em poder dizer como o senegalês de Niigata: Garrincha, eu me lembro. Abençoado seja o nosso craque. Bendito seja o menino passarinho, único jogador que conseguiu enxergar o futebol com olhos de poeta. Que jamais nos esqueçamos do alquebrado e divino Quasímodo dos gramados, que fez do Maracanã a sua catedral de NotreDame – e das nossas vidas uma aventura cheia de sentido.
...
Marcos Caetano é comentarista dos canais ESPN e cronista de O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e revista Piauí.