A locomotiva parou 22/05/2001
- Marcos Antonio Moreira -- fazperereca@yahoo.com.br
Apesar de já avançado em anos e com a saúde abalada, ele recusou ajuda e, embora com visível dificuldade, fez questão de arrastar sozinho o pesado portão de chapa de aço que dá acesso à pequena chácara, no bairro do Verdão.
Atrás do alto muro, nenhum segurança armado -- coisa espantosamente normal, hoje, até protegendo casa de presidente de associação de bairro no exercício do primeiro mandato.
Na garagem, nenhum carrão importado; no quintal, nenhum sinal de ostentação -- apenas uma pequena piscina de fibra de vidro, à esquerda de quem entra na chácara -- área adquirida ainda no tempo em que aquela região da cidade fazia parte da zona rural de Cuiabá.
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-- “É para os netos” – explicou, como que se desculpando pelo “luxo”.
Na varanda da casa, à entrada do escritório, uma televisão colorida, meia-boca.
-- “A tevê fica sempre aqui, dia e noite”, explicou enquanto andava com alguma dificuldade rumo ao escritório. “É para os ladrões”, acrescentou com uma ponta de malícia. “Assim, eles encontram logo o que roubar e não precisam entrar na casa e provocar um prejuízo ainda maior” – esclareceu, rindo da própria esperteza.
“Esperteza” que aquele senhor que acabara de empurrar sozinho o pesado portão, não teve quando prefeito da Capital, deputado federal e senador da República, cargos que exerceu sempre pelo voto direto e, por causa disto, passou os últimos anos de vida limitando as despesas ao essencial, porque a aposentadoria de pouco mais de dois mil reais era praticamente toda consumida em medicamentos.
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-- Então, o sr. é que é o pai da ferrovia?...
-- “Bondade do povo e da imprensa cuiabana”, reagiu com modéstia, há coisa de dois anos, quando acabei conhecendo o senador Vicente Emílio Vuolo, por conta de uma de uma denúncia que fiz, revelando a tentativa de se excluir a Capital do traçado da “Ferrovia do Vuolo”.
-- “O Dr Iglésias (o engenheiro Domingos Iglésias Valério), o Zé Eduardo ( o jornalista José Eduardo do Espírito Santo) e eu, apenas tentamos materializar um sonho antigo, que começou com Euclides da Cunha”, acrescentou, enquanto arrastava novamente para fechar o pesado portão, fazendo questão de reverenciar o idealizador da obra e de dividir o mérito com os companheiros de jornada.
Por causa da denúncia, que o deixou indignado, o senador acabou cancelando sua participação em um seminário sobre a ferrovia em Rondonópolis e publicou um manifesto na Imprensa local condenando a manobra da Ferronorte e exigindo o integral cumprimento da lei de sua autoria.
Depois disto, nos encontramos mais umas duas ou três vezes, quando acabou segredando um episódio que dá bem a dimensão e a solidez de caráter do velho senador:
Convidado pelo empresário Olacyr de Moraes para assumir uma das diretorias da Ferronorte, apesar de estar sem mandato e passando por sérias dificuldades financeiras, descartou de pronto o convite, com um adendo: “E a recusa vale também para meus filhos”.
-- “Vão pensar que nossa luta de tantos anos foi por causa de um emprego”— justificou-se, dispensando a diretoria.
Acabou indicado para o cargo na Ferronorte um irmão – Paulo – do senador Carlos Bezerra.
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Vicente Emílio Vuolo foi sepultado ontem, em Cuiabá e, com ele, o derradeiro símbolo de uma era em que a política era uma ciência social e os partidos formadores de quadros que encaravam sua função como um verdadeiro sacerdócio e não como uma ciência exata -- onde prevalece o toma-lá-dá-cá -- e os partidos, ao invés de formar quadros, formam quadrilheiros.
Com ele, apesar de todas as garantias da Ferronorte, pode estar sendo sepultado, também, o sonho da ferrovia em Cuiabá, agora que parou definitivamente de funcionar a locomotiva que ao longo de três décadas embalou este sonho. E para empunhar a bandeira, não se vislumbra na paisagem política de Mato Grosso ninguém com a autoridade moral nem com a firmeza de propósito do velho senador.
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