Dilma não é vítima de coisa alguma 19/07/2015
- Carolina Farina - Veja.com
Em março de 2004, o historiador Boris Fausto analisou em entrevista a VEJA os desdobramentos do caso Waldomiro Diniz, primeiro de uma escalada de escândalos com que o país lamentavelmente acostumou-se a conviver desde que o Partido dos Trabalhadores chegou à Presidência da República.
Na época, porém, os brasileiros não imaginavam que os corredores do Planalto escondiam muito mais do que um assessor corrupto, mas um megaesquema de compra de votos de parlamentares -- o mensalão, só seria descoberto um ano mais tarde.
Ainda assim, o autor de estudos clássicos como "Revolução de 30" e "Crime e Cotidiano" já alertava para o "risco de desmoralização do partido mais sólido do Brasil" -- e para os efeitos disso no campo das ações sociais, bandeira histórica da legenda.
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Onze anos e dezenas de escândalos depois, Fausto analisa, em conversa com o site de VEJA, os efeitos da crise que parece sem volta na qual o governo Dilma Rousseff mergulhou.
Ao analisar como os anos de governo do PT devem entrar para a história, Fausto afirma que os estragos provocados pela corrupção são graves o suficiente para ofuscar os resultados das ações sociais.
"O que vai prevalecer no futuro: os inegáveis ganhos sociais ou a imagem de todos os escândalos associados ao PT?", diz.
Leia a entrevista:
Quão grave é a crise que o governo atravessa hoje? Há semelhanças entre essa e as que culminaram nas quedas de Jango e Collor?
- São situações bem diferentes. O que elas têm em comum é a gravidade. As duas primeiras, de formas diversas, acabaram resultando na queda dos presidentes. Ainda não temos elementos suficientes para saber como esta vai terminar. Mas o fato de a presidente Dilma Rousseff ter concedido uma entrevista na qual diz que não vai cair revela uma situação em que ela e o Executivo estão, para usar uma linguagem do boxe, contra as cordas.
Diante das críticas, a presidente recorre com frequência a analogias sobre o período em que foi torturada pelo regime militar. O que isso representa para a imagem dela?
- Em relação àquela época, pode-se até discordar da forma de luta armada contra o regime, mas essa é uma circunstância absorvida pelo tempo. O que prevalece é que ela e milhares de brasileiros tiveram uma atitude corajosa de enfrentar dessa ou daquela maneira a ditadura. Mas a utilização desse passado como tentativa de valorizar ou reforçar a imagem da presidente hoje é um problema. Isso porque a situação é completamente outra. Dilma não é, atualmente, vítima de coisa alguma. Quando torturada nos porões da ditadura, sim. Hoje ela apenas é responsabilizada por comportamentos e decisões, para dizer o mínimo e ser bem leniente, muito discutíveis. É outra situação. E isso é uma demonstração de fraqueza muito grande -- inclusive, o reconhecimento da gravidade da situação em que ela se encontra. Um presidente que vem a público pra afirmar "eu não vou cair" é porque está na corda bamba.
Há de fato chance de Dilma não terminar o mandato?
- Falta tanto tempo e a crise é tão grave que chance há. Essa história do impeachment vai depender de muitas coisas. É uma espécie de onda que vai e vem. Essa onda é muito rápida: com frequência parece que chegamos a um paroxismo, que não vai haver saída, e depois há certo arrefecimento. Mas há muito mandato e há muita acusação por ai...
Nesse cenário, qual o papel da oposição?
- O próprio PSDB não se entende sobre essa questão... O PSDB se modificou muito internamente, não do ponto de vista de quem o apoia, já que ele sempre foi um partido de classe média. O que acontece é que o partido tinha uma posição razoavelmente clara em outra época, em outro período. Tinha figuras politicas representativas, como Mário Covas, Franco Montoro, e figuras relativamente mais novas, como Fernando Henrique Cardozo. Mas a falta de homogeneidade interna se acentuou ao longo dos anos. O partido não soube ficar na oposição e, agora, quando teria todas as condições de captar o descontentamento popular, é um partido que as pessoas vêm com muitas restrições. Não é possível ser entusiasta do PSDB.
Falta coerência ao partido?
- Claro. Tome-se a votação que derrubou o fator previdenciário como um exemplo de oportunismo. Entre ser coerente com o que fez no passado ou atacar o PT, preferiu-se a segunda opção. Quando você prefere uma circunstância oportunista de ataque, é muito desmoralizante.
Aécio Neves teve mais de 50 milhões de votos no ano passado e saiu do pleito como nome forte para liderar a oposição. Ele conseguiu fazê-lo ou o país ainda carece dessa liderança?
- Não o fez e não sei se vai conseguir. As pessoas têm limites. Não é uma questão de culpa, é uma questão de aptidão. Eu o acho melhor que os outros, inclusive votei nele, mas sua capacidade de liderar é limitada por uma série de fatores, pessoais inclusive. Não tem uma postura de quem está se forjando como líder, vai entusiasmar e ditar rumos. Isso é difícil, depende de muito talento.
Ao término de sua mesa na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o senhor foi bastante aplaudido quando criticou tanto governo quanto oposição. O brasileiro está descrente da classe política?
- Sim. Existe sim uma descrença em relação aos políticos e instituições: o Congresso Nacional em primeiro lugar, mas hoje também o Executivo. O Congresso esgotou, pelo menos nessa conjuntura, a capacidade de representação da cidadania. Já o Executivo entrou em crise com uma série enorme de acusações, como nunca se viu na história deste país. Salva-se o Judiciário, que tem avançado. Salvam-se órgãos como o Ministério Público e a Polícia Federal. Mas isso tudo se dá num clima de muita desesperança porque, no fundo, os órgãos especificamente políticos entraram em crise.
Embora essa crise atinja também o Congresso, é ele quem tem ditado a agenda política nacional. Nosso Parlamento evoluiu ao longo dos anos?
- O Congresso ganhou uma relevância, nesse momento, que não tinha quando o Executivo estava forte. Quando a presidente ou o presidente, no caso do Lula, era forte, o Congresso tinha uma posição de quase subordinação em relação ao Executivo. Isso acabou por força do desprestigio, da fraqueza do Executivo. Mas não acredito que do ponto de vista da legitimidade, dos senadores e deputados realmente representarem a cidadania, as coisas tenham mudado muito. Já me chamaram em certa ocasião de saudosista quando eu disse o que vou dizer, mas não é uma questão de saudosismo, trata-se de uma constatação. O Parlamento no período democrático que começou em 1945 e findou com o golpe de 1964 era muito mais representativo, tinha muito mais qualidade. Os partidos tinham mais significado ideológico, tinham mais significação, enfim, tudo considerado, aquele parlamento era melhor do que esse.
O senhor se lembra em algum momento na história de algum presidente da Câmara como Eduardo Cunha?
- Não. Eduardo Cunha é sui generis. Ele conhece bem o regimento, brinca com ele, faz manobras heterodoxas. Ele está aparecendo com destaque nesse momento, mas o percurso político que vai seguir é difícil de prever. É bom lembrar que ele está sendo investigado no Supremo Tribunal Federal, o que não é confortável...
O Brasil vive hoje uma onda conservadora?
- Claramente. Em terrenos como a questão do aborto, do casamento gay e da separação de Igreja e Estado, que vem sendo arranhada com muita frequência, o retrocesso é evidente. Não que o país já não fosse conservador, mas isso está se acentuando. Esse quadro tem muito a ver com o avanço das denominações religiosas evangélicas e da criação de uma bancada evangélica bastante forte, além da característica geral do Congresso que foi eleito em 2014.
O ambiente político hoje permitiria ao país enfrentar um processo de impeachment sem risco à consolidação da democracia?
- Nesse momento, a não ser que decisões do TCU e do TSE agravem muito mais a situação e o Congresso se mova a reprovar contas, eu não creio, apesar de toda essa gravidade, que estejamos caminhando para um impeachment. Mas esse é um processo previsto em lei. Se houver fundamento, ele terá legitimidade. É, contudo, uma operação traumática, difícil. Será um momento delicado, como é delicada a atual situação. É difícil saber como o país se comportaria. Se a situação se arrastar ao longo do próximo ano e, eventualmente, houver impeachment, quem ganha com isso é o Lula.
De que maneira?
- Se isso acontecer -- e estou falando como hipótese --, haverá protestos e o PT se utilizará do discurso, como já vem fazendo, de que houve golpe e a presidente foi vítima de uma conspiração da direita. Mas com o passar do tempo, o cenário ficará mais favorável ao Lula. Seria possível separar com mais facilidade as figuras dele e de Dilma, sobretudo pelo reforço da ideia de que os tempos do ex-presidente eram outros, sem crise na economia, por exemplo. Hoje Lula está numa posição difícil, e se fossem convocadas eleições neste ano é muito duvidoso que ele conseguisse reverter a situação negativa, o "volume morto", em que se encontra. A hipótese mais provável em caso de impeachment, contudo, é a de que o vice-presidente Michel Temer assuma o Planalto até 2018. Dessa forma, o quadro pode pender para uma virada em que o Lula volte a aparecer como figura muito forte. A longo prazo, a constatação de que Dilma sucumbiu aos próprios erros podem descolar sua imagem da de Lula. A queda da criatura ajuda o criador. Mas é preciso dar tempo ao tempo.
Como esses mais de dez anos de governo do PT serão lembrados?
- A imagem das gerações futuras é dada pela transmissão de conhecimento. Portanto, precisamos nos perguntar se o que vai prevalecer são os inegáveis ganhos sociais ou a imagem de todos os escândalos, como nunca houve na história deste país, associados ao PT. Não se deve negar os ganhos no terreno social, mas é preciso dizer que os males causados pelo partido nas instituições, na decência administrativa, são de tal ordem que indicam uma apreciação negativa desses anos no futuro.
E Dilma, a primeira mulher na Presidência da República, como entrará para a história?
- Sou muito a favor do ingresso das mulheres na politica, mas a essa altura isso não tem muita importância. O que prevalece é que o Lula inventou uma pessoa que evidentemente está aquém da capacidade de governar o país.