De concurso de miss a maternidade, cadeirantes contam como resgataram autoestima 21/08/2017
- Heloisa Cristaldo - Agência Brasil
A vida da artista plástica Kallyna Sampaio mudou completamente quando, aos 22 anos, sofreu um acidente de carro. Há dois anos, o capotamento e a fratura da cervical deixaram a jovem tetraplégica, seu amigo que dirigia o veículo morreu na hora. O trágico acidente não impediu Kallyna de seguir em frente.
No início deste mês, a jovem foi a vencedora do concurso de beleza Miss Cadeirante, etapa Distrito Federal. Além de vencer a disputa, mostrou a importância da autoestima.
Cercada por estigmas e preconceitos, a vida da mulher cadeirante pode ser exemplo de força e superação. Em entrevista à Agência Brasil, três mulheres contam como aprenderam a lidar com sua nova condição e a valorizar as pequenas conquistas do dia a dia.
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“O concurso caiu como uma luva, me deu objetivos de vida que eu não tinha antes. Agora, vou fazer um curso de moda, quero ser referência de estilo”, conta. A jovem sonha em concluir uma graduação na área e abrir a própria grife de roupas.
Além da moda, Kallyna compartilha suas experiências diárias em um canal no Youtube. Na plataforma, a jovem detalha exercícios e terapias que as ajudam no resgate de seus movimentos e também na sua feminilidade. Nos vídeos, dá dicas de maquiagens, superação e autoestima para seus seguidores.
“Por incrível que pareça, as pessoas se tornam muito melhor depois de sofrerem um acidente. É um divisor de águas na vida. Quando estou triste, me dou o direito de passar um dia triste, apenas um dia. Eu choro, enxugo as lágrimas e no outro dia já levanto bem. Penso que tenho todos os outros dias para ser feliz. Mas para isso, autoestima é fundamental. Eu valorizo a minha vida e inclusive sou até mais social do que antes”, descreve Kallyna.
A jovem foi escolhida entre quinze concorrentes como miss por um time de 13 jurados entre médicos, psicólogos e fisioterapeutas.
Em novembro, representará o Distrito Federal na etapa nacional do concurso. “A limitação do movimento não pode ser a limitação da vida”.
Mãe Cadeirante
A rotina das mães brasileiras não costuma ser uma tarefa simples para administrar: escola, creche, alimentação e diversão. Jovelina Oliveira, de 29 anos, paraplégica há sete anos, enfrenta os mesmos desafios ao criar seus dois filhos e ainda dribla, com muita dedicação, a limitação dos seus movimentos.
“Ao descobrir que estava paraplégica, achei que tinha morrido e não tinha sido enterrada”, conta.
Jovelina teve o segundo filho, quando já usava cadeira de rodas, e hoje, divorciada, administra sozinha a rotina deles.
“Tive que reaprender tudo. Foram alguns anos e muita fé, mas redescobri a sexualidade, a mulher que estava dentro de mim e eu mesma estava matando. Uma mulher na cadeira de rodas pode ser bonita, desde que tenha amor-próprio. Quando eu entendi isso, passei por uma transição da mulher que era andante para a cadeirante. Descobri que enquanto há vida, há esperança.”, diz.
A jovem ficou paraplégica ao ser atingida por cinco tiros após discussão com uma vizinha.
“Quando meu segundo filho nasceu, eu já era cadeirante. A vida precisa ter sentido. Não posso parar, tenho muitos planos. Ainda quero fazer faculdade e escrever um livro contando a minha história, falar dos tabus a respeito da sexualidade da cadeirante. A gente precisa saber que é possível superar as dificuldades”, explica.
Empatia
Há seis anos, Stefanny Fernandes Freitas, de 25 anos, sofreu um acidente de trânsito e também ficou paraplégica. De carona na moto de um amigo, foi atingida por outro carro quando o sinal fechou. Ao todo, foram 30 dias de internação entre a vida e a morte.
Durante o período de tratamento, foi descoberto um tumor raro, no canal entre umbigo e a bexiga. Como era inicial e assintomático, Stefanny provavelmente não teria descoberto o câncer caso não tivesse sofrido o acidente.
“Pela gravidade do tumor, eu poderia morrer em dois anos, caso não tivesse descoberto naquele momento. Só isso já me ensinou a ver tudo que passei de uma outra forma”, conta.
Stefanny se redescobriu como uma mulher bonita depois do acidente ao participar de sessões de maquiagem com uma amiga e, atualmente, faz da própria maquiagem a sua profissão.
“Ela me resgatou. Além de me cuidar, eu vendo beleza e autoestima para outras pessoas. O cadeirante ainda sofre muito preconceito. Mas eu saio, faço festas. De tanto me falarem que eu era bonita, acreditei”, diz.
“Essa experiência me ensinou muito sobre empatia, como me colocar no lugar do outro. Me fez também querer ajudar, porque eu recebi muita ajuda”, completa.
Terapia
O resgate da autoestima e a redescoberta do corpo da mulher passam por um processo, que muitas vezes depende da ajuda profissional de um psicólogo.
Segundo a doutora em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade de Barcelona e membro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Daniela Zanini, o tratamento é fundamental no auxílio da restituição da autoestima, na redescoberta da sexualidade, assim como em atividades como trabalho, relações com filhos e a reinserção social.
“O processo de adaptação é muito significativo e dependendo de como ela lida, terá um maior nível de bem-estar. Caso contrário, a mulher pode desenvolver transtornos como quadros depressivos, ansiedade ou mesmo fobia social”, explica a psicóloga.
Segundo Daniela Zanini, o protocolo de tratamento inclui um “processo de luto”, em que a mulher compreende a perda de mobilidade e a valorização da vida.
“Todos esses processos com perdas significativa, a gente trabalha o processo de luto, que não e só quando a pessoa morre. É refente a processos simbólicos de encerrar um determinado processo da vida e iniciar um outro, que implica, inclusive, novas formas de adaptações ao mundo”, afirma.
“O primeiro momento é o luto, a perda da mobilidade desse membro, da perda de alguns aspectos da independência funcional. Mas, posteriormente, é importante trabalhar os recursos que essa pessoa dispõe para adaptar. O que acontece algumas vezes é que a gente se acostuma tanto a um modelo de vivência, que não consegue pensar em outras formas”, aponta.
“É importante focar em aspectos positivos, não naquilo que perdeu. Mas no que ela ainda tem e como, a partir dos recursos que ainda tem preservado, pode se adaptar a nova condição de vida. A partir de uma adversidade, é comum se descobrir competências, habilidades, pessoas significativas na vida, e esse acaba sendo um processo de aprendizagem”, completa.
A psicóloga explica ainda que a sexualidade tende a ser recuperada quando a mulher compreende o aspecto de forma mais ampla.
“A sexualidade é muito mais que o ato sexual em si, e nesse sentido que pode até ter ficado comprometido aspectos específicos, mas ela ainda tem uma gama de outras questões que pode acionar para exercer sua sexualidade. Uso da criatividade, intimidade, o que pode ser um caminho para novas descobertas e até mais intimidade com o parceiro”, avalia.