Completam-se, neste Natal, 40 anos da morte de Charles Chaplin. Ele morreu em 25 de dezembro de 1977 e, quase sem exceção, todos os obituários destacaram a importância da data.
Claro, ninguém escolhe o dia em que vai morrer, mas faz todo sentido que Chaplin, criador de um personagem imortal – Carlitos -, tenha se despedido justamente no dia em que a cristandade festeja o nascimento de Jesus Cristo.
Jesus é amor, proclamam os cristãos. Seu nascimento é signo de esperança – o Messias que os judeus não reconhecem e ainda esperam.
Carlitos tinha/tem tudo a ver com esse espírito de humanidade e fraternidade. Vagabundo, sapatos rotos, chapéu e bengala, ele se equilibra sobre os próprios passos, sempre enfrentando o poder, em todas as suas formas.
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O policial, o capitalista são seus arqui-inimigos. Sem um níquel, Carlitos comeu os cadarços do seu sapato, como se fossem fios de espaguete, para matar a fome (Em Busca do Ouro), protegeu o menino órfão (O Garoto), devolveu a visão à garota cega (Luzes da Cidade), enfrentou a automação (Tempos Modernos).
Chaplin, agora não é mais Carlitos, foi um dos construtores da linguagem, fazendo avançar as técnicas de narração cinematográfica.
A questão é: na lembrança desses 40 anos, qual é o legado de Chaplin?
Ingrid Guimarães, uma das atrizes mais conhecidas de cinema e TV do Brasil, recordista de público com sua série De Pernas pro Ar – na quinta, 28, ela estreia Fala Sério, Mãe -, o tem em altíssima conta.
“Chaplin é a minha maior referência de humor. Sou louca por ele. Tenho todos os seus filmes. Essa mistura poética entre humor e emoção é tudo o que almejo. Esse vagabundo desastrado, genial, atemporal. Meu favorito é O Garoto. Choro todas as vezes em que eles se reencontram.”
Na contracorrente, Fábio Porchat, igualmente conhecido do cinema, TV e internet, emite uma opinião que pode ser polêmica.
“O humor pode ser cruel, porque envelhece muito rápido, e o Chaplin envelheceu. Não creio que o jovem de hoje tenha o mesmo interesse por ele. É importante, a resistência dele em O Grande Ditador, o discurso final, mas é meio peça de museu. Representa outra época.”
E Renato Aragão, o Didi, a alma dos Trapalhões?
“(Chaplin) É uma das minhas maiores referências, ao lado de Oscarito e Carmem Miranda. Com ele, passei a olhar a melhor maneira de se usar o corpo com graça, mas sem exagero. E poucos conseguem fazer chorar da mesma forma, com o mesmo gestual.”
Jarbas Homem de Mello, que estudou muito a obra e a vida de Chaplin para fazer o musical de 2015, reflete:
“Ele foi um gênio do seu tempo, porque encontrou sua arte num momento oportuno, quando o cinema estava se criando. A partir daí, Chaplin foi fundo, ao colocar em seu personagem, Carlitos, todas as nuances do ser humano e deixando para os artistas que viriam depois um legado – saber como desvendar e colocar em sua interpretação o lado bom e o lado mau”.
Jarbas toca num ponto essencial – o artista e seu tempo. Charles Spencer Chaplin nasceu em Londres, em 16 de abril de 1889. Os pais eram artistas de music hall e se separaram quando ele tinha 3 anos. O pai era alcoólatra e morreu de cirros e quando Chaplin tinha 12 anos. Foi enterrado numa vala comum.
A mãe era cantora, mas sofria de problemas mentais. Teve diversas internações. Numa delas, uma infecção de laringe impediu-a de cantar. Foi o fim.
Face a tanta adversidade, o pequeno Chaplin foi guerreiro. Perseverou. De 1910 a 12, participou de uma primeira turnê pela América, integrando a trupe de Fred Karno. Regressou à Inglaterra e, de novo em 1912, e outra vez com Karno, voltou aos EUA.
Da trupe, participava um certo Arthur Stanley Jefferson, que mais tarde ficou famoso como Stan Laurel, formando dupla com Oliver Hardy – O Gordo e o Magro.
Em 1913, Mack Sennett impressionou-se com o número de Chaplin e o contratou para sua companhia, a Keystone. Foi um desastre, e o próprio Chaplin convenceu-se de que não levava jeito para o cinema.
Salvou-o Mabel Normand, que não apenas percebeu o potencial do jovem Charles, como convenceu Sennett a dar-lhe outra chance.
Chaplin odiava ser dirigido por Mabel, mas com ela adquiriu popularidade. Na Keystone, criou e aprimorou seu personagem de “vagabundo”. Charlot, na França, Carlitos no Brasil (e na Argentina), der Vagabunbd, na Alemanha.
O gênio de Chaplin foi perceber que podia usar o movimento acelerado na imagem, quando o filme era projetado a 18 quadros por segundo, no período silencioso, para obter um efeito cômico.
Tudo parecia correr na tela, os carros, na era anterior à massificação, eram bichos domésticos.
Quando o cinema começou a falar, e os filmes passaram a ser projetados a 24 quadros por segundo, Chaplin resistiu quanto pôde.
Luzes da Cidade tem partitura, mas os diálogos seguem de cartela.
Em Tempos Modernos, Chaplin incorpora o som, mas ainda é um diálogo absurdo, que não faz sentido (e vira, em si mesmo, um efeito cômico).
Finalmente, em O Grande Ditador, ele incorpora a palavra, e o discurso final do barbeiro é uma síntese do credo humanista de Chaplin. A palavra contra o autoritarismo.
Como diz Jarbas Homem de Mello, Chaplin foi dos últimos cineastas, daquele tempo, a acreditar no cinema falado.
“Quando o fez, valorizou a palavra mais que qualquer outro. Nenhuma palavra é gratuita em seu cinema. A valorização da palavra e do silêncio é uma das grandes contribuições de Chaplin.”
Luís Lobianco, que fez seu aprendizado na internet e no stand-up, conta que Chaplin talvez seja sua experiência mais antiga de cinema. Quem lhe apresentou Carlitos foi sua avó.
“Naquela época, eu tinha um olhar, uma compreensão. O Garoto foi uma revelação, permanece meu favorito. Hoje, já adulto, maduro – espero -, vejo Chaplin como uma inspiração para a minha geração porque ele, como todos nós, foi autoral e usou as ferramentas do cinema e do humor para refletir sobre o homem no mundo, a injustiça. Que sua reflexão ainda permaneça atual é prova de quão pouco, no fundo, as coisas mudaram.”
Ou, então, é a máxima viscontiana do Príncipe Salinas em O Leopardo: “As coisas mudam (precisam mudar) para que tudo permaneça o mesmo”.
Gregório Duvivier (talvez o mais “cabeça” dos humoristas brasileiros – é um admirável cronista) destaca a força desse Chaplin “pensador”.
Ele não pensava apenas o homem e o mundo. Pensava o fazer cinema.
Duvivier é capaz de ficar horas falando do seu Chaplin – o de Luzes da Cidade.
“Conta que ele ficou muito tempo empacado, com o filme parado, porque não conseguia resolver o impasse. A questão é que a garota é cega e, quando Carlitos a toma sob sua proteção, ela pensa que é milionário. Quando recupera a visão e descobre que é um vagabundo, a decepção é grande – para ambos. Chaplin quebrou a cabeça até ter a ideia do som. É o som da porta de um carro batendo que cria, no imaginário da mulher, a ideia do Carlitos rico. Em 1931, ele já usava o som para contar sua história e fazer avançar a linguagem.”
Foi um dos diretores fundadores e, influenciado por seus mestres Max Linder, Georges Méliès, D. W. Griffith e Luis e Auguste Lumière, desenvolveu uma linguagem própria muito rica, que também incorporou mímica, pantomima e pastelão.
Pensar o cinema, e a sociedade. A obra de Chaplin atravessou as duas grandes guerras, e ele zombou dos ditadores.
“Embora Luzes da Cidade seja meu preferido, creio que O Grande Ditador é outra obra-prima. Ali, no calor da hora, ele se permitiu ser duro, e crítico, com (Benito) Mussolini e (Adolph) Hitler. E o mais extraordinário é que aquele discurso final, escrito e filmado em 1940, há 77 anos, é uma peça da maior atualidade. Vale para hoje”, acredita Duvivier.
Essa atualidade, produto do comprometimento, fez com que, por volta de 1950, em plena era do macarthismo, Chaplin fosse considerado esquerdista e antiamericano.
J. Edgar Hoover o considerava um inimigo pessoal e instruiu o FBI a criar um dossiê secreto sobre Chaplin, a quem sonhava banir dos EUA.
Em 1952, foi para o exterior. Exilou-se com a família – havia se casado com Oona O’Neill, filha do escritor Eugene O’Neill – na Suíça, e lá morreu.
Voltou, em 1972, para receber um Oscar honorário. Tardiamente, a Academia fez-lhe justiça, aplaudindo-o de pé.
Nos 40 anos de sua morte, a obra de Chaplin segue viva. E é necessária, nos tempos obscuros que vivemos.