Não dá para ser filho de Maria nessa hora 24/02/2018
- André Vargas - ISTOÉ
O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira foi o primeiro comandante de tropas brasileiras no Haiti, entre junho de 2004 e setembro de 2005.
Lá enfrentou situações parecidas com as que o Exército encontrará nas favelas do Rio de Janeiro durante a intervenção federal: criminosos bem armados, um terreno difícil e uma população tornada refém.
Na reserva desde 2011, ele possui trânsito entre o alto oficialato, tanto que usa o pronome “nós” ao se referir ao Exército e aos colegas de farda.
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Entre seus interlocutores está o interventor nomeado pelo presidente Michel Temer, general Braga Netto.
Para o general Heleno, os principais pontos a serem acertados pelo governo federal no Rio são a dotação de meios (homens e equipamentos) e a criação de regras para uso da força contra criminosos, a fim de que no futuro ninguém seja acusado de abusos.
Ponderado, sua conversa só desanda quando discorre sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que apontou os colaboradores e torturadores da ditadura militar (1964-1985).
A ENTREVISTA
As forças armadas estão preparadas para combater em áreas repletas de civis?
- O Exército atuou por 13 anos no Haiti e há similaridades. Lá não havia pontos de vendas de drogas mantidos com sacrifício de vidas, mas a sensação para os soldados é muito parecida. Há risco de tiros, inferioridade geográfica e possibilidade real de confronto com grupos armados.
O senhor acredita que só tropas nas ruas podem acabar com os tiroteios?
- Seria muito difícil. O Rio de Janeiro é uma cidade gigantesca. Não há efetivo nem condições para estarmos em todos os lugares. É preciso fazer uma seleção dos pontos críticos e depois ir expandindo. Isso foi feito em Porto Príncipe. À medida que pacificávamos um local, passávamos para outro.
Em que situações o Exército vai poder atirar?
- Que a atuação seja respaldada pela lei. Regras de engajamento devem balizar o comportamento das tropas. Em todas as missões da ONU, essas regras estão guardadas nos bolsos dos militares para não haver dúvidas.
No Haiti, valiam as das missões de imposição da paz, que pregam a proporcionalidade de forças. Se o bandido está de fuzil, não se pode atirar nele de canhão.
Outro ponto: se o sujeito demonstrar alguma intenção hostil, é possível chegar à letalidade [atirar para matar], a fim de evitar baixas entre a população inocente.
Só que antes ele precisa ser advertido, mesmo que o ato hostil não tenha ocorrido.
No Haiti, quando tocavam fogo em pneus no meio da rua, pegávamos o megafone e alertávamos em francês que eles estavam sujeitos a ser alvejados. Se continuassem, que arcassem com a responsabilidade.
Mas o Brasil não é o Haiti...
- No caso daqui, antes defendo uma ampla campanha de divulgação em todas as rádios e TVs alertando que não dá mais para tocar fogo em ônibus, roubar cargas, bloquear ruas, atirar para o alto e, sobretudo, exibir ostensivamente armas, principalmente as de guerra, como fuzil, submetralhadora ou pistola de grosso calibre.
Quem estiver armado assim, será alvo das forças legais, podendo ser morto mesmo sem acionar o armamento.
Hoje, eles [criminosos] fazem isso por deboche, saindo por aí na garupa de motos portando fuzis diante da polícia. E ninguém pode atirar, pois uma bala perdida vai acertar numa criança ou numa senhora grávida.
Não vivemos uma situação normal no Rio, por isso temos que tentar mudar. Há reação contra algumas medidas, mas é preciso entender que a intervenção já é uma excepcionalidade.
O que é preciso para que a intervenção funcione?
- Flexibilidade, mobilidade e tropas especializadas. Flexibilidade são as regras de engajamento. Elas podem parecer violentas, mas não o são diante de um adversário violento.
Por isso é preciso atingir um nível de resposta compatível com o de quem está do outro lado. Não dá para ser filho de Maria nessa hora.
Já a mobilidade são meios aéreos que permitam deslocamentos rápidos por uma cidade congestionada como o Rio. Com três tiros é possível travar a Linha Amarela.
Helicópteros permitiriam atuar tanto em situações de emergência, como em operações que exijam rapidez e sigilo.
As tropas também precisam ser especializadas e compostas, de preferência, por gente que não more no Rio de Janeiro.
Como garantir a segurança da população diante de criminosos bem armados de um lado e militares do outro?
- Sendo comedidos, como no Haiti. Buscando se aproximar da população, ressalvando os direitos humanos, o estado de direito e contando com respaldo jurídico naquelas situações em que há dubiedade.
Há também problemas institucionais, como corrupção nas polícias. Isso tropa e comando não resolvem. O que fazer?
- Esse é um dos problemas mais sérios a serem resolvidos no curto prazo. Quando os policiais percebem que os exemplos do mais alto escalão são nefastos, acabam cedendo, se não tiverem a grande convicção de que o melhor é ser honesto.
Se o chefe não tiver moral para colocá-los na cadeia, facilmente eles se acharão no direito de se locupletar.
Isso é regra?
- Convivi minha vida inteira com policiais. A maioria é honesta e respeita a farda. Também é preciso melhorar a seleção e formação.
Como é preciso colocar gente na rua com rapidez, eles acabam não recebendo a preparação adequada. Isso exigiria um trabalho de longo prazo.
Antes, porém, seria preciso um expurgo. Há gente na polícia que sabe apontar quem deve sair e dá para fazer uma limpa.
O problema é que os meandros judiciais não garantem que isso funcione, já que existem tantas instâncias, embargos e procrastinações que o sujeito leva 20 anos para ter uma punição.
Que ações seriam necessárias para que não aconteça o que ocorreu com as UPPs?
- Elas provocaram uma migração da bandidagem. Outros lugares, como Niterói, pioraram, pois muito bandido foi para lá. Além disso, no início eram poucas unidades, com efetivos compatíveis.
Só que não ocorreram ações em outros níveis de poder para que as UPPS mudassem a vida dos moradores, com a chegada de educação, saneamento e postos de saúde.
Daí o policial conclui que está colocando sua vida em risco sem que nada melhore.
Junto com esse desgaste, as UPPs se espalharam pelo Rio sem efetivos, com policiais muito novos e acabaram contaminadas. Hoje suas casinholas viraram alvo de tiros.
Em conversas com colegas que ainda envergam farda, qual é o ânimo em relação à decisão do governo?
- Nós somos patriotas. Uma medida dessas, ainda que tenha sido de surpresa, sempre será bem acolhida. Não vai haver sabotagem, protestos ou críticas desenfreadas.
É óbvio que estamos preocupados, pois sabemos da gravidade da situação do Rio. Também sabemos que a conjuntura jurídica do Brasil hoje é muito ruim, em todos os aspectos.
Esse é um sentimento generalizado, não só no meio militar.
O ministro da Defesa disse que o Exército não terá poder de polícia. Como assim?
- Isso é surreal. Como se chama uma força para atuar na segurança pública sem lhe dar poder de polícia?
Não acredito nisso. Além do mais, a Constituição dá direito a qualquer cidadão prender alguém em flagrante delito. Isso é claro.
Quando se fala em poder de polícia, se trata muito mais do poder de investigar. Além do mais, o decreto de intervenção é muito mais forte que os decretos de GLO [Garantia de Lei e da Ordem].
Juristas afirmam que mandados de busca coletivos são ilegais. Como vasculhar uma grande área sem esse instrumento legal?
- Ninguém foi ouvir o que pensam as forças legais e o interventor. No Haiti, não dependíamos de mandados e fizemos vários cercos e revistas sem cometer atos arbitrários.
Isso [o direito de fazer buscas] estava dentro de uma medida de exceção, como é a própria intervenção agora.
Até conversei com o general Braga Netto sobre isso. Sei por ele que a intenção não é sair pelas comunidades vasculhando a casa de gente que nada tem nada com a história. Ninguém irá lá só para mostrar serviço.
Essas ações serão precedidas de trabalhos de inteligência ou de evidências.
Temos que sair dessa burocracia exagerada que dá cada vez mais liberdade aos criminosos. É isso que as pessoas não estão entendendo.
O comandante do Exército, general Villas Bôas, afirmou que deseja garantias de que as ações militares não gerem uma nova Comissão Nacional da Verdade. Se os limites da lei não forem ultrapassados, isso não ocorrerá. Onde ele quer chegar?
- A nossa geração, minha e dele, foi toda formada no regime militar. Eu saí oficial em dezembro de 1969. O regime durou até 1985. Por 15 anos, como tenente e capitão, vivi a fase de contenção da luta armada para que o Brasil não virasse uma Colômbia, que não tivéssemos aqui uma Farc ou virássemos uma Cuba.
Nenhuma organização da luta armada fazia qualquer referência à democracia. Pode procurar. Alguns de seus ex-integrantes têm a dignidade e a coragem de declarar isso.
Mas houve tortura.
- O que aconteceu é que as ditas forças de repressão eram formadas para combater a luta armada. Seus integrantes cumpriram as missões que lhes foram dadas. Depois, muitos deles, como o pai do general Sérgio Etchegoyen [o general Leo Guedes Etchegoyen], do Gabinete de Segurança Institucional, acabaram relacionados pela Comissão da Verdade como torturadores. Ele nunca teve nenhuma participação.
A Comissão da Verdade só apurou excessos, crimes e torturas do lado das forças legais. Os integrantes das organizações que lutaram para derrubar o regime militar e, por trás, tentaram fazer do Brasil uma república popular, tipo China, são como heróis.
Ganharam indenizações, polpudas aposentadorias e passaram em branco.
Eles não mataram guardas de banco, soldados, um capitão americano [Charles Chandler] na porta de casa e o presidente da Ultragás [o dinamarquês Henning Albert Boilesen]?
Essa Comissão foi um festival de mentiras e distorções. O general Villas Bôas tem razão. Daqui a 30 anos vão dizer que os militares que participaram da intervenção no Rio eram torturadores.