A pátria pendura as chuteiras 19/05/2018
- André Sollitto - IstoÉ
A Copa do Mundo 2018 começa em 14 de junho na Rússia. Estamos quase lá, mas até agora o único sinal de empolgação dos brasileiros com o mundial é o sucesso do álbum de figurinhas.
Fenômeno de vendas, teve uma tiragem inicial de sete milhões de exemplares e uma produção diária de 40 milhões de cromos.
O sucesso de vendas do álbum da Copa se repete a cada quatro anos. O mesmo não se pode dizer da euforia do torcedor.
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Longe das bancas de jornal, o clima é de apatia e a seleção já não fascina como antes. Um levantamento realizado pela Paraná Pesquisas apontou que 65,8% dos entrevistados estão pouco ou nada interessados no evento. Apenas 8,8% se disseram muito entusiasmados.
A falta de interesse é justificada, principalmente, quando se lembra do fiasco da última Copa, com a vergonhosa derrota em casa para a Alemanha por 7 a 1.
Mas a apatia é também reflexo de uma situação bem mais complexa que envolve o futebol e é influenciada pelo que ocorre longe dos gramados — a economia e a política.
A partida contra a Alemanha escancarou deficiências que até então permaneciam ocultas sob a mística do futebol como paixão nacional.
Nem a conquista do inédito título Olímpico, em 2016, aliviou a frustração.
“O 7 a 1 mostrou a desorganização do nosso futebol”, diz Rinaldo Martorelli, presidente do Sindicato de Atletas de São Paulo.
“Ao contrário da Europa, nunca houve aqui uma preocupação em trabalhar a parte emocional dos jogadores, o lado intelectual. Se olharmos para a história das Copas, todas as vezes que o Brasil perdeu a organização deixou muito a desejar. Nosso futebol só se sustenta no talento do jogador brasileiro”, afirma Martorelli.
Nos bastidores, a atuação das instituições esbarra nos limites da lei.
Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero, os três últimos dirigentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), órgão máximo do esporte, são investigados por corrupção. Marin cumpre pena de prisão nos Estados Unidos.
Falta também uma identificação do público com a seleção brasileira. Poucos atletas, além de Neymar, são conhecidos por todos.
Dos 23 convocados pelo técnico Tite, apenas três jogam no Brasil. Todos os outros defendem times europeus (e um joga na China).
É um reflexo do atual mercado da bola, responsável por levar jogadores muito jovens para clubes espalhados pelo planeta. Com isso, os ídolos ficam distantes do coração do torcedor.
“As rivalidades clubísticas alimentavam ainda mais a expectativa em relação à Copa”, diz Flávio de Campos, professor de história da USP e coordenador do Ludens, núcleo que estuda o futebol.
Segundo Campos, agora há uma desvinculação dessa seleção em relação à torcida.
A agressividade do mercado em buscar os maiores talentos do mundo teve início no final da década de 1980 e só tem se intensificado.
A elitização também tem afastado grande parte do público dos estádios.
Com um futebol de qualidade mediana e ingressos caros, muitos perderam o interesse pelo esporte.
Enquanto esses grandes astros da seleção, cujo valor total de mercado beira os R$ 4 bilhões, recebem seus salários milionários, a realidade no Brasil é bem diferente.
Segundo os dados mais recentes divulgados pela CBF, relativos a 2017, são 24 mil jogadores profissionais defendendo 722 clubes no país.
Em 2015, 82,4% recebiam salários de até R$ 1 mil e 96% ganhavam até R$ 5 mil. Um dos casos mais emblemáticos que escancarou essa realidade é o de Wendell Lira, vencedor do Prêmio Puskas, da Fifa, oferecido ao gol mais bonito do ano, em 2015.
Na época, ele defendia o Goianésia, time do interior de Goiás. Após receber a homenagem, anunciou que estava se aposentando dos gramados para se dedicar aos campeonatos profissionais de videogames.
Hoje é um dos principais jogadores da modalidade, além de youtuber e palestrante.
“A mudança me deu um ganho financeiro e também de carreira, porque eu não sabia quanto tempo ainda tinha para jogar. Hoje não dependo tanto do meu corpo, tenho mais tempo e mais condições de sustentar a família”, diz ele.
FORA DOS GRAMADOS
A conjuntura brasileira também afeta os ânimos do torcedor. Em 2013, manifestações tomaram as ruas do País e o bordão “Não vai ter Copa” foi um dos mais entoados pelos manifestantes, indignados com os gastos destinados à construção de estádios enquanto o Brasil apresentava tantos outros problemas.
“Acho que o grande legado da Copa de 2014 foi esse. O torcedor ganhou um poder crítico que não tinha. Houve um desencantamento do povo”, afirma o jornalista Marcelo Duarte, autor de “O Guia dos Curiosos: Copa” e “100 Camisas que Contam a História de Todas as Copas”.
O que começou como um movimento pela redução das tarifas de ônibus foi ganhando um alcance cada vez maior, incorporando todas as demandas da sociedade.
O resultado? “Um país polarizado, com os três poderes em frangalhos e uma grave crise econômica. Tudo isso tem um reflexo no interesse pelo futebol”, diz Flávio de Campos.
“Nós, como país, estamos abatidos. Vivemos uma ressaca do ódio, de toda intolerância semeada”, afirma o historiador. Para piorar, neste momento, cerca de 27,7 milhões de brasileiros estão desempregados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A própria camisa da seleção brasileira, adotada por muitos manifestantes durante a euforia inicial dos protestos, acabou se tornando um símbolo de outras manifestações que pediam o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Mesmo para uma parcela da população que não compartilha da crença de que o processo foi um golpe, a ideia de usar a camisa amarela com o brasão da CBF está fora de questão.
Isso explica por que a designer mineira Luísa Cardoso criou uma versão alternativa, na cor vermelha, com o desenho de uma foice e um martelo e o antigo logo da CBD, a Confederação Brasileira de Desportos, responsável por organizar os esportes no Brasil até 1979.
A CBF proibiu a venda do uniforme alternativo.
Até quem não tem nenhum empecilho ideológico para comprar a camisa da seleção canarinho esbarra em outra dificuldade: o preço.
É um produto para poucos. A versão do torcedor é vendida pela Nike a R$ 249.
Entre todos os campeões do mundo é o valor que mais pesa no bolso do consumidor, correspondente a 10% da média salarial do país.
Na Alemanha, por exemplo, o uniforme é vendido pelo equivalente a R$ 370, mas o valor representa apenas 2,6% da renda per capita.
É tentador enxergar essa apatia pela Copa do Mundo como um sinal de amadurecimento do torcedor, que passou a acompanhar o futebol apenas como um entretenimento, sem perder de vista os problemas do país.
Mas ele ainda é o esporte mais popular do Brasil. E bastam duas partidas vitoriosas sob o comando de Tite para que a empolgação retorne.
O treinador é visto como o grande ídolo dessa seleção, mais do que Neymar ou outro craque em campo.
“Se você analisa a biografia do Tite, você vê que ele é muito estudioso, tem uma seriedade enorme”, diz Marcelo Duarte.
Ele foi o responsável por conduzir o time em uma campanha impecável na classificação para o mundial, e restaurou a esperança em torcedores já céticos.
“Tite é um organizador. Imprimiu à seleção um estilo de jogo totalmente europeu”, afirma o historiador Marcos Guterman, autor do livro “O Futebol explica o Brasil”.
Tudo isso, no entanto, fora do contexto de uma Copa do Mundo. Ele precisa mostrar os resultados dessa preparação na Rússia.
“O brasileiro tem essa mentalidade de que só vale o título. Ou é campeão ou não é nada”, diz Rinaldo Martorelli.
Essa mentalidade que faz com que a própria corrupção tenha uma tolerância maior quando o assunto é futebol.
Se na política ela deu motivos para ir às ruas, no esporte, nem tanto. Todo torcedor ficou indignado com os escândalos envolvendo a CBF ou o superfaturamento na construção de estádios.
Mas nenhuma cobrança foi feita para inibir essa prática no futuro.
“O próprio torcedor admite a desorganização do clube, porque lá está sua paixão”, afirma Martorelli.
Por outro lado, segundo o presidente do sindicato dos jogadores, esta é a primeira vez que a seleção vai para a Copa com uma estrutura condizente com uma equipe campeã.
Quando o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues criou a expressão “Pátria de chuteiras”, o futebol era um orgulho nacional. Era também o “ópio do povo”, na visão da esquerda. Não é mais.
Apenas se o Brasil, tido como um dos favoritos da competição ao lado de Alemanha, Espanha e França, voltar para casa com o caneco, haverá aquele carnaval ufanista que toma conta da nação sempre que a glória de sermos os melhores do mundo se sobrepõe a nossas mazelas.
Ainda assim, não se poderá dizer que a seleção de Tite salvou nosso futebol — e muito menos nosso País.
Afinal, os problemas do Brasil não serão resolvidos com o erguer da taça.