Nos próximos cinco anos, o Brasil vai parar de vacinar bovinos 10/08/2018
- FÁBIO MOITINHO - ISTOÉ RURAL
Dentro de cinco anos, o Brasil poderá integrar um seleto grupo, hoje formado por 68 países. Entre eles estão potências globais, como os Estados Unidos, a Alemanha e o Canadá, e também vizinhos como o Chile, o Peru e até o Suriname.
Esses países são considerados zonas livres de febre aftosa sem vacinação, certificados pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE, na sigla em inglês), com sede em Paris.
O trabalho não será fácil para uma doença transmitida por vírus e que pode levar à morte bovinos e também bubalinos, ovinos, caprinos, suínos e animais silvestres.
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Até aqui, o País já lutou por quase seis décadas para erradicar a doença do rebanho bovino.
Só para comparação, os americanos realizaram tal tarefa em 1929.
“De forma gradual, a meta é parar de vacinar o gado”, diz o médico veterinário Guilherme Henrique Figueiredo Marques, 48 anos, diretor do Departamento de Saúde Animal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e representante do Brasil na OIE.
Marques vai comandar os 18,5 mil servidores nessa tarefa, em 5,5 mil escritórios de vigilância sanitária no País.
Dono de um mercado global da ordem de US$ 6,3 bilhões em exportações, o Brasil poderia ganhar mais se a febre aftosa, ou a presença atenuada do vírus em vacinas, não fosse um impeditivo para que muitos países ainda deixem de comprar carne aqui ou a desvalorize por questões sanitárias.
A ENTREVISTA
Por que o Brasil demorou tanto tempo para ter o status de país livre de febre aftosa, embora ainda com vacinação?
– Porque, até no início da década de 1990, a OIE apenas reconhecia livre da doença um país como um todo. Essa condição somente foi alcançada pelo Brasil neste ano.
O País se tornou o maior exportador de carne bovina porque em 1992 a OIE estabeleceu uma nova regra internacional. Por ela, foi possível dividir o Brasil em zonas livres e ir solicitando o reconhecimento por etapas.
Aos poucos, foram criadas as zonas livres com vacinação, um trabalho de quase 60 anos.
Foi muito tempo, sim, especialmente porque somos um país continental, com 220 milhões de bovinos que se tornou o maior rebanho comercial do mundo.
Se a regra de 1990 tivesse sido mantida, somente a partir de agora o País passaria a ser um grande exportador para muitos mercados.
Em valores, o que a aftosa significa ao País?
– Por ano, significa cerca de US$ 1 bilhão gastos com controle sanitário. Os produtores são os que mais contribuem, com cerca de 70% desse valor.
Mas é um investimento que tem retorno. Para cada US$ 1 investido no controle da aftosa, retornam US$ 30 para a cadeia, através das exportações.
É o projeto de maior êxito que o Brasil já realizou na pecuária. Esse retorno é muito maior que o de qualquer usina hidrelétrica já instalada no País.
Cinco anos serão suficientes para tornar o Brasil livre da doença, sem vacinar o rebanho?
– Sim. O reconhecimento da última zona livre de aftosa com vacinação, os Estados de Roraima, Amazonas e Amapá e parte do Pará, era a peça que faltava no quebra-cabeça do projeto que o governo vinha, gradativamente, colocando em prática.
Regras foram estabelecidas e avançamos. Hoje, o País possui um sistema veterinário satisfatório, com profissionais treinados para a tarefa.
Aliás, essa é uma exigência e um pré-requisito para poder fazer jus ao reconhecimento que alcançamos na OIE.
Qual deve ser o próximo passo?
– O próximo passo já está definido desde o fim do ano passado. É um plano estratégico para mais dez anos.
De forma gradual, nos próximos cinco anos, o Brasil vai parar de vacinar bovinos.
Nos cinco anos seguintes vamos fazer um monitoramento fino da situação, o que vai exigir do Ministério da Agricultura uma equipe técnica ainda mais fortalecida.
Quando se retira a vacinação, o risco de um eventual surto é maior. Por isso, é preciso um total controle de fronteira com outros países e um sistema muito eficiente de comunicação na notificação de um surto.
O atual time de fiscais será capaz de cumprir essa tarefa?
– Sim, mas precisamos ir além. Hoje, cerca de 8,5 mil servidores públicos trabalham na área de vigilância sanitária em todo o País. É um exército que pode chegar a qualquer propriedade rural em um prazo máximo de até 12 horas.
Se houver uma notificação de suspeita de uma doença, o governo vai saber.
Aliás, criamos um sistema robusto e capaz de vigiar não somente a aftosa, como outras doenças críticas que podem acometer os animais, entre elas a brucelose e a febre do Nilo em equinos.
Mas a vitória sobre a febre aftosa tem um gosto muito especial, porque ela se tornou um divisor de águas.
Divisor de águas em que sentido?
– A aftosa é uma enfermidade emblemática e pode causar um alto impacto comercial e econômico.
Todo país no mundo, que tem um serviço veterinário confiável e quer agregar valor aos seus produtos, é reconhecido como livre sem vacinação.
A presença da febre aftosa é o que realmente separa um país subdesenvolvido de um desenvolvido, porque hoje já existem excelentes vacinas, além de estudos de epidemiologia que podem erradicar a doença.
Conseguimos tirar o Brasil dessa condição, mas não podemos parar porque corremos o risco de a qualquer momento ter uma reaparição da doença.
Vale lembrar que o último surto da doença foi em 2006.
Onde estaria esse risco?
– Nos vizinhos, principalmente. Ele estaria na Venezuela e na Colômbia. São os mais arriscados países da América do Sul. A Venezuela tem em torno de dois milhões de bovinos e a Colômbia cerca de 13 milhões.
Não há um reconhecimento internacional da Venezuela como país livre da aftosa, pela dificuldade político-econômica que passa o país.
É bem provável que possa estar ocorrendo algum foco por lá e isso é muito preocupante.
Já na Colômbia houve a detecção de um foco de aftosa no ano passado.
Colocar outros países além do Brasil nessa conta não é um exagero?
– Não, porque nós ainda não acabamos com a doença, acabamos com a circulação do vírus no País.
Isso significa que nossa tarefa é redobrar as atenções nas barreiras primárias, que são aquelas em fronteira com outros países e em aeroportos, para coibir qualquer ação de bioterrorismo.
Há interesse de diversos setores, que não vou nomear, para que seja mantida a vacinação por muitos anos.
O governo tem monitorado isso, sistematicamente.
As ameaças nessa área sanitária podem vir até de outros países que competem com o Brasil nas exportações de carnes.
Episódios como o da Carne Fraca não arranham a imagem do sistema de fiscalização sanitária do País?
– De forma alguma. O que foi colocado em xeque foi a imagem do País e não o que de fato aconteceu. A carne brasileira não é fraca, a carne é forte.
O que aconteceu foi uma atuação errônea de alguns funcionários do Mapa, os quais já penalizados.
Estamos falando de 12 pessoas, contra um universo de 18,5 mil funcionários. Então, não é justo transferir esse peso a todo o sistema.
Acredito que no atual embate internacional, há que prevalecer o reconhecimento do trabalho de vigilância sanitária nacional.
No futuro, o que aconteceria com o Brasil, caso houvesse um surto, já que a indústria veterinária deve parar a produção de vacinas?
– Nada muda no modo de agir. Temos um plano estratégico de contingência da doença e já realizamos simulações de emergências sanitárias.
O plano estratégico prevê a criação de um banco com estoque de cerca de 450 milhões de doses de vacina.
Além disso, também haverá laboratórios que manterão um banco de antígenos, que é a matéria-prima da vacina. Há muitas indústrias interessadas em cuidar dessa tarefa para o governo.
No entanto, é uma interpretação equivocada acreditar que a vacina é a tábua da salvação. Ela é apenas um instrumento importante quando se tem mais de seis mil focos da febre, como já ocorreu com o Brasil no passado.
Hoje não temos mais isso. Mas, caso haja algum surto, vacina é o que não vai faltar.
A peste clássica suína é um exemplo prático disso. Há cerca de dez anos a doença foi erradicada no País e não vacinamos mais os
animais.
Todavia, há uma indústria que mantém o estoque estratégico e que também exporta a vacina para outros países.