Negligência e burocracia levaram ao boicote à carne 31/01/2008
- Jamil Chade - O Estado de S.Paulo
Por uma seqüência de negligências do governo brasileiro e confusão burocrática, a carne bovina nacional está suspensa do mercado europeu por tempo indeterminado. A União Européia (UE) não aceitou a lista de 2,6 mil fazendas apresentada pelo governo, que receberia o sinal verde para exportar carne ao principal mercado mundial. Uma nova missão da UE será enviada em 25 de fevereiro ao País, mas o Itamaraty já prevê a interrupção do comércio pelo menos por dois meses, mesmo que o problema não seja a qualidade da carne, e sim a incapacidade do País de seguir as recomendações dos importadores.
Depois de dois anos de debates e de várias oportunidades dadas pelos europeus para que o Brasil colocasse seu sistema de rastreamento de gado em ordem, Bruxelas anunciou em dezembro que o País teria até hoje para enviar uma lista de propriedades que atendessem às exigências sanitárias da UE. Pelos cálculos dos veterinários europeus, apenas 3% das fazendas brasileiras poderiam estar nessas condições - cerca de 300 propriedades. Entre as exigências, constam a necessidade de comprovação de que o gado estava há mais de 40 dias na propriedade e mais de 90 dias em um Estado livre da febre aftosa. Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo já estão fora da lista por causa da aftosa detectada há dois anos.
Mas o governo, sem coordenar a lista entre os Estados, enviou em partes a relação com as 2,6 mil fazendas. Só o Estado de Minas Gerais preparou uma lista de 1,3 mil e encaminhou ao governo federal no último sábado. A Europa se recusou a publicar a lista em seu diário oficial, embora a Comissão admita que não se trata de uma ameaça à saúde dos consumidores e, sim, de uma suspensão técnica.
PUBLICIDADE
O governo já sabia há três dias que não havia garantias de que a exportação seria mantida. “Alertamos que, no momento, não há garantias de que a produção de carne fresca de bovinos, obtida de animais oriundos de fazendas constantes na referida lista, poderá ser exportada para aquele bloco econômico (UE)”, afirmou a Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura em carta obtida pelo Estado. O documento, que circulou internamente no governo, é datado de 28 de janeiro e assinado por Ari Crespim dos Anjos, do Ministério da Agricultura.
SITUAÇÃO PODE MUDAR
Irritada com a atitude do Brasil, a UE deixou claro ao governo, na noite de terça-feira,que a lista era inaceitável. Ontem, Bruxelas confirmou a suspensão em declaração à imprensa. O comissário de Saúde do bloco, Markos Kyprianou, que por meses apoiou os esforços do Brasil, perdeu a paciência. Diante da pressão de grupos privados europeus, principalmente da Irlanda, o comissário teve de ceder e aceitar a suspensão.
“Consideramos cerca de 300 propriedades como autorizadas a exportar para a UE, com base em inspeções prévias”, disse Kyprianou. “Agora, não há uma lista de propriedades autorizadas e, neste momento, não há propriedades brasileiras autorizadas a exportar para a UE.”
O comissário admite que a situação pode mudar “logo”. Mas deixou claro que, por enquanto, a suspensão está declarada. No Itamaraty, todo o discurso e reuniões no exterior para provar que a carne nacional era segura acabaram desacreditados pela falta de organização no Ministério da Agricultura e a confusão em torno das listas.
O governo alegou que enviou uma lista oito vezes maior que a pedida pelos europeus diante do fato de que todas as fazendas cumpriam as exigências e, portanto, não poderia escolher entre elas. Na prática, o Brasil tentou jogar a responsabilidade da escolha das fazendas de volta aos europeus.
Funcionários de alto escalão do governo ainda acreditavam que as ameaças da UE não passariam de blefe, já que o bloco precisaria da carne nacional para manter a inflação de alimentos em baixa. Ontem, a UE deixou claro que não ficará refém de nenhum fornecedor. Os brasileiros também não contavam que o produto poderá ser substituído por outros exportadores, como Uruguai e Austrália, além dos próprios europeus.
Em Bruxelas, autoridades européias não disfarçam a decepção em relação à atitude do Brasil. Ministros, veterinários e setor privado brasileiro fizeram várias viagens a Bruxelas para tentar convencer os europeus de que a carne estava dentro dos padrões. Kyprianou, quando esteve no Brasil, foi recebido com um enorme churrasco. O que os brasileiros não sabiam era que o comissário é vegetariano.