Temos que aprender com os coxinhas 04/11/2018
- Luís Antônio Giron - ISTOÉ
O ex-ministro José Dirceu de Oliveira e Silva, ou Zé Dirceu, admite que a esquerda precisa aprender com os protestos populares que depuseram Dilma Rousseff em 2016 se quiser voltar ao poder.
De acordo com o petista, a resistência popular nas ruas se faz necessária agora.
“Temos que apreender com os coxinhas. Organizar o povo e fazer o que eles fizeram, colocando nas ruas seis milhões de coxinhas ou de setores conservadores das classes médias que se opunham ao governo — o que é legítimo”.
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Para Dirceu, que lançou recentemente lançou suas “Memórias – volume I” (Geração Editorial), abarcando os anos de 1968 a 2005, o Brasil precisa de uma repactuação.
“Se eles não concordarem, vai acontecer o mesmo que aconteceu à ditadura militar: uma hora ela cai”.
Ele avalia que o País de 1968 era muito conservador e autoritário e “mudou para melhor”.
Mas estaria havendo, no seu entender, uma “perigosa regressão de direitos sociais, cultural, em razão do fundamentalismo religioso e do falso moralismo” personificado pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro.
A ENTREVISTA
Você afirmou que assistir aos noticiários na televisão dentro do presídio foi um “agravo de pena”. Qual, afinal, o papel da televisão junto aos presidiários?
— Evidentemente que o preso quer lazer, quer distância. Mas o preso quer trabalhar e estudar também. De qualquer maneira, é muito importante o lazer da televisão para o preso: a maioria dos filmes é enlatado e não tem qualidade, mas tem novelas, os seriados, o “Globo Repórter”, tem muitas coisas boas na televisão, como “Domingo Espetacular” e parte do “Fantástico”, aos domingos.
Há qualidade na televisão. O problema é que não há informação plural diversificada. Não há o contraditório, esse é o grande problema. Os programas diurnos sobre a questão policial e do crime instigam essa mentalidade que o Bolsonaro representa. Os programas plantaram as sementes para o Bolsonaro ter essa votação.
Suas memórias se entrelaçam à história do Brasil dos últimos 50 anos. A imagem que você tinha do Brasil nos anos 1960 — oligárquico, escravagista, injusto — é a mesma que você tem do Brasil de hoje?
— Nós não conhecíamos o Brasil. Quando eu saí depois do sequestro do embaixador, pus na minha cabeça que eu tinha de estudar o Brasil. Tanto que em Cuba estudei muito o Brasil depois do treinamento militar, entre 1972 e 1974, quando eu estava para voltar de novo ao País.
Estudei, fichei, fiz análise, de projetos do governo ditatorial, de conjuntura, li os clássicos da história do Brasil, estudei a infraestrutura e a agricultura.
Quando eu voltei em 1975 e vivi clandestino seis meses, todo mês eu visitava uma região do Brasil para conhecer. No PT, conheci o Brasil profundamente como secretário geral e presidente.
Quem vai governar o Brasil tem que conhecer o País. De gabinete não se governa.
O País de 1968 era muito conservador e autoritário. O Brasil mudou para melhor, até porque implantamos uma democracia.
Agora está havendo uma regressão de direitos sociais, cultural, porque Bolsonaro significa uma regressão cultural perigosa por causa do fundamentalismo religioso e do falso moralismo — porque é falso o moralismo dele.
A sociedade avançou no século XXI, no direito da mulher, dos homossexuais, das etnias, no respeito às diferenças e à diversidade. Mas aconteceu também a desigualdade, a miséria, a pobreza, a concentração de renda. São problemas tão graves como aqueles e precisam ser enfrentados.
Querem regredir, querem desmontar a superestrutura constitucional de direitos, educacional e cultural que garante a diversidade e pluralismo. Daí essa história de escola sem partido, que na verdade é escola sem pluralismo.
Uma das passagens mais importantes de suas memórias está na reflexão sobre a luta armada durante a ditadura. Por que você conclui que a luta armada foi justificável?
— O que eu digo é que moralmente está justificado. Mas do ponto de vista de como combinamos as ações armadas com a luta política parlamentar e de massas, foi um equívoco.
Mas são coisas diferentes. Eu posso analisar como engenheiro de obra feita, porque fui partícipe disso. Mas temos que reconhecer que foi um erro.
Por que você não conta no livro que participou diretamente da luta armada nos anos 1970, apesar de ter recebido lições de guerrilha urbana com Carlos Marighella e recebido treinamento militar em Cuba?
— Voltei ao Brasil em 1970 e participei da luta do Molipo [Movimento de Libertação Popular, organização guerrilheira apoiada por Cuba, formado por estudantes] em São Paulo. Não vou falar o que eu fiz. Quando eu fizer 80 anos, eu falo.
Não vou me vangloriar pelo que fiz ou deixar de fazer. Até porque não vejo heroísmo de ter participado da resistência armada à ditadura. Era a cabeça da nossa geração, acreditávamos naquilo. Eu participei, sim. Mas não vem ao caso quando, onde e como.
Hoje a luta armada seria justificável?
— A luta armada não se justifica mais. O Brasil já sofre de muita violência para agora introduzirmos no Brasil as forças armadas ou a resistência armada popular.
O que temos que fazer é fazer a resistência popular nas ruas. Temos que aprender com os coxinhas. Organizar o povo e fazer o que eles fizeram, colocando na rua seis milhões de coxinhas ou de setores conservadores das classes médias que se opunham ao governo — o que é legítimo. E derrubaram pelo parlamento e pelo Poder Judiciário.
E, se houvesse resistência, teriam derrubado pela força, porque estavam determinados.
O país precisa do contrário da luta armada. O País precisa ser pacificado. O país precisa de uma repactuação. Se eles não concordarem, vai acontecer o mesmo que aconteceu à ditadura militar: uma hora ela cai.
Se nós derrubamos a ditadura, por que não vamos derrubar a ditadura da toga, do parlamento, das elites e da mídia?
Sobre a coalizão com outras forças políticas — como o PMDB — que você coordenou para viabilizar o governo Lula, o que você faria diferente se pudesse voltar atrás?
— Governo governa por ordem e comando do eleitor. O eleitor forma a Câmara e o Senado. Se você não tem maioria, em grande parte por causa do sistema eleitoral que temos, tem de fazer alianças.
O problema é quem comanda a orientação do governo, o partido que elegeu o presidente ou os aliados.
Nunca os aliados comandaram o governo do Lula, pelo menos enquanto eu estava lá.
O erro não é fazer alianças, e sim não ter uma sustentação, mobilização e pressão popular constante e crescente sobre o parlamento, como a oposição fez com a presidente Dilma até derrubá-la.
A esquerda se uniu a forças conservadoras nessas coalizões e não conseguiu penetrar de fato nos mecanismos burocráticos que fazem o Estado funcionar. Minha impressão é que os governos de esquerda preferiram terceirizar a organização dos dispositivos burocráticos de poder a capacitar seus quadros para lidar mais intimamente com os mecanismos do poder. Houve um erro operacional nesse aspecto e foi isso que permitiu a corrupção?
— A corrupção existe tão ou maior nas empresas privadas. Ela só existe por causa das empresas privadas. Não houve governo que criou mais leis e instrumentos para combater a corrupção que os de Lula e Dilma.
O problema da burocracia estatal e das corporações são os concursos, são planos de cargo e carreira.
O pensamento de direita capturou esses órgãos, que passaram a fazer política partidária, quando eram órgãos que deveriam ser republicanos.
Talvez essa tenha sido a grande ilusão nossa. Porque alianças, concursos públicos e reestruturação de carreiras, tudo isso tínhamos que fazer, senão o Estado não funciona.
O problema é que essas pequenas carreiras na Polícia Federal, Ministério Público, AGU, CGU, Receita, TCU sempre serviram aos poderosos.
Elas se transformaram em superburocracias corporativistas, que querem autonomia do executivo, do legislativo, que querem controle.
São pequenas corporações ditatoriais. Isso precisa ser resolvido no Brasil no futuro.
É possível construir uma agenda equilibrada e duradoura que mescle políticas sociais e liberalismo em um país tão desigual como o Brasil sem sobrecarregar os cofres públicos?
— Os cofres públicos estão sobrecarregados por causa dos juros e das isenções fiscais dos Refis liberadas por Michel Temer, num total de mais de R$ 100 bilhões.
O problema do Brasil não é combinar liberalismo com o social, mas fazer uma reforma tributária e bancária que crie um excedente social, que é o imposto, o suficiente para manter um estado de bem-estar social.
Porque pensar no Brasil onde só o mercado vai cuidar do cidadão é jogar na miséria e na pobreza, como acontece em ciclos e ciclos, 30 ou 40% da população. O País explode.
Você escreveu o primeiro volume das memórias em circunstâncias precárias. Apesar disso, foi a prisão que o inspirou a escrever. Você se impôs uma disciplina?
— Tirando o almoço coletivo, eu escrevia todo sábado e domingo, que são dias de baixo-astral na prisão, quando a gente se lembra da família e dos amigos.
Escrevi 700 páginas com o mesmo papel e a mesma caneta, sentado numa cama, com uma luz ruim ligada o tempo todo porque a luz em uma sala é uma luz que não se escolhe para escrever.
Na juventude, você estudou Marx, Lênin, Tróstki etc. De que maneira esses pensadores o influenciaram?
— Antes de ler Marx e Lênin, li Capistrano de Abreu, Pandiá Calógeras, Haddock Lobo, Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso. Tive acesso à literatura mundial muito jovem.
Eu nunca fui marxista porque nunca transformei aquilo em religião ou ortodoxia. Mas li os principais livros de Marx, só que nunca estudei “O Capital”.
Lênin era um grande político. Isso não quer dizer que adotei o leninismo como concepção de partido. Lênin foi um dos maiores líderes políticos do século XX.
Li Isaac Deutsch. Nunca fui antitrotskista. As divergências internas do PT com o trotskismo não aconteceram porque eles eram trotskistas. Foi porque a política deles era equivocada.
Nunca fui stalinista. Até porque rompi com o Partido Comunista Brasileiro por causa do espírito de em 1968, eu me opus à invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, coordenadas pela União Soviética.
Tenho influência forte de Cuba, do fidelismo e do Régis Debray. Nunca fui foquista. Sou socialista, de esquerda, mas não sou marxista-leninista.
Tive influência de Max Weber e de Hermann Hesse, e de Gibran Kalil Gibran.
Curzio Malaparte, que é um escritor fascista, escreveu duas obras primas — os romances “Kaputt” e “A Pele” — nas quais você toma um choque sobre o que era guerra e a vida. Nunca tive preconceito.
E os escritores de direita?
Considero Vargas Llosa e Nelson Rodrigues grandes escritores, apesar de serem de direita. Sempre combati a ideia de você não ter acesso à literatura de homens de direita. Seria um escândalo.