O Brasil branco dá as costas ao Brasil negro 23/11/2018
- Cilene Pereira - ISTOÉ:
Não fosse a sensibilidade do fotógrafo Lucas Landau, o instante em que o menino negro olha para o céu coberto de fogos na praia de Copacabana, no réveillon desse ano no Rio de Janeiro, passaria despercebido em meio à confusão da festa.
No entanto, o retrato que agora ilustra essas páginas tornou-se o símbolo de um País que ainda dá as costas à maioria de seus cidadãos.
Embora 55% da população seja negra, de modo geral o Brasil trata esse imenso contingente da população como pessoas invisíveis, feito o garoto que contemplou as luzes completamente sozinho.
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Nessa semana, quando cerca de mil cidades e cinco estados comemoraram o Dia da Consciência Negra, no dia 20 – data atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695 – a foto traz a metáfora que todos precisamos deixar para trás de uma vez por todas.
É inegável que houve avanços em relação ao tratamento dos negros no Brasil.
O primeiro é a conscientização cada vez maior da própria população negra a respeito de seus direitos, o mais importante deles o de não ser discriminada por nada, muito menos por causa da cor da pele.
Segundo dados da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, nos cinco primeiros meses desse ano houve um aumento de 30% nos boletins de ocorrência por racismo e injúria pessoal em relação ao mesmo período de 2017.
E isso aconteceu não necessariamente porque os atos de racismo cresceram, mas em grande parte porque os agredidos tiveram consciência de que foram vítimas de um crime. Inafiançável, aliás, como devem ser os crimes mais graves.
As cotas raciais, instituídas há dezoito anos no Brasil e confirmadas pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, fazem parte do mesmo movimento de mudanças.
Hoje, elas são ofertadas na maioria das universidades públicas brasileiras e possibilitam a jovens que jamais chegariam ao ensino superior saírem diplomados.
Mas em país forjado por 349 anos de escravidão, com os negros equiparados a animais e mercadorias, a velocidade dos avanços é travada por todo o ranço racista herdado desses três séculos e meio de subjugação.
O País foi o último do mundo a acabar com o regime, em 1888, com a lei Áurea, mas a simples assinatura na lei da Princesa Isabel não significou que, a partir daquela data, a população negra seria incorporada à massa de habitantes brancos e tratadas como os cidadãos que são.
Ao contrário. O Brasil não se preparou para isso do ponto de vista estrutural – onde morariam e trabalhariam aqueles milhares de negros libertos de um dia para outro? – nem cultural.
Nada foi feito para que seus costumes fossem respeitados e tampouco foi pensado algum sistema de educação que permitisse a eles qualquer outra qualificação que fosse muito além de pegar na enxada ou realizar serviços domésticos.
De cada dez pessoas mais ricas, oito são brancas. 60% dos desempregados são negros e só 25% da nova Câmara Federal é composta por essa população
E, assim, lá se vão mais 130 anos de tratamento e oportunidades desiguais.
Lá se vão mais 130 anos em que o Brasil continuou dando as costas aos negros.
Se lá atrás eles não receberam ajuda para lutar e viver de igual para igual com os brancos, é natural que ainda permaneçam em circunstâncias muito piores do que a de seus concidadãos de pele clara.
Os números revelam essa realidade de maneira inquestionável.
De cada dez pessoas mais ricas, oito são brancas. Entre as mais pobres, a maioria é negra.
Mais de 60% dos desempregados são negros e, entre aqueles que estão no mercado de trabalho, o salário médio é cerca de R$ 1,2 mil mais baixo do que a de um funcionário branco.
Apesar das cotas, a presença negra nas universidades não chega a 10%.
Mais de 70% das pessoas que têm acesso à coleta de lixo e de esgoto e de abastecimento de água são brancas.
A cada dez pessoas assassinadas no País, sete são negras.
Nas instituições, a presença de negros também continua muito baixa.
Na composição da nova Câmara dos Deputados, eleita em outubro, 75% dos parlamentares são brancos.
O número de representantes negros até cresceu (5%), mas como se vê a disparidade em termos de números é alta demais.
Nas universidades públicas e privadas, somente 62 mil dos 400 mil professores declararam-se pretos ou pardos.
Na média, em 2016, apenas 27% dos empregos que exigiam ensino superior estavam ocupados por essa população.
Em compensação, 45% das vagas que pediam apenas ensino fundamental mantinham-se com os negros.
Tão ruim quanto se deparar com números assim é fechar os olhos ao que eles desnudam: o Brasil está muito longe de oferecer condições iguais a todos os seus habitantes e é um País racista.
Apesar da miscigenação de raças que amalgamou nossa nação, o preconceito contra os negros está aí, registrado nos números, e estampado nos atos diários de agressões aos quais eles são submetidos.
Pergunte a qualquer pessoa preta e ela terá uma história de discriminação para contar. Dela própria, da família, dos amigos.
Toda história de preconceito racial enoja, mas às vezes é difícil entender como a ignorância e a crueldade podem chegar a pontos tão altos.
Recentemente, uma menina negra de 4 anos, Ava, foi xingada quando entrou na piscina de um condomínio de luxo no interior de São Paulo, com crianças brancas, da mesma idade, mandando que ela saísse da água.
Natural do Malawi, ela foi adotada pelo casal Maria Klein e Arthur Pinheiro Machado e estava na piscina com uma amiga da mãe.
A mulher resistiu e ficou com Ava dentro da água. As crianças brancas saíram.
Do lado de fora, as mães faziam comentários asquerosos, do tipo “essa gente tem muitas doenças”.
Obviamente seus filhos estão aprendendo em casa a discriminar alguém porque ele tem a cor da pele diferente da sua.
Enquanto essa mentalidade mesquinha não mudar, especialmente entre as gerações mais novas, o Brasil continuará apartado e desigual, dando as costas aos meninos e meninas que também têm direito a participar da festa.