No poder, até um cão é obedecido 03/01/2019
- André Duchiade - Época
Em seu novo livro, Tyrant (Tirano), o historiador americano Stephen Greenblatt, especialista em Shakespeare, mostra de que forma o bardo inglês aborda em suas obras características tirânicas como narcisismo, desprezo às leis e mobilização das pessoas contra as minorias.
LEIA ENTREVISTA
O senhor sempre pensou que a obra de Shakespeare pudesse ser útil para refletir sobre questões políticas do presente?
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— Dois anos atrás, fui a Teerã para o primeiro e último Congresso Iraniano sobre Shakespeare. Em minha fala, tratei de como, no fim do século XVI e no início do século XVII, era extremamente perigoso ser honesto ao expressar os próprios pensamentos.
Essas afirmações obviamente encontravam ressonância e diziam muito naquele lugar, em uma cultura onde é arriscado fazer certas perguntas sobre o mundo contemporâneo.
O mesmo acontecia na época de Shakespeare, quando havia coisas que não podiam de modo algum ser ditas, ao custo de ter a orelha ou o nariz decepados, ou a cabeça arrancada.
No mundo de Shakespeare, elas podiam ser ditas no teatro, contanto que você não abordasse diretamente a situação vivente.
Então Shakespeare concebeu com muita esperteza como alguém poderia virar e dizer: “Até um cachorro é obedecido quando está no poder”.
Se você dissesse isso na taberna naquela época, seria preso. Mas, se um personagem diz isso, o rei Lear em sua loucura, nada acontece.
Quais são as características de um tirano nas obras de Shakespeare?
— Shakespeare entendia, e não só ele, mas também sua época, que um tirano era aquele que governava ilegitimamente, que fazia isso de acordo com seus próprios interesses e não com os de seu país.
Shakespeare representou certos traços de personalidade como se fossem característicos do tirano. Um certo tipo de narcisismo.
Um espírito de intimidação, um modo de mobilizar as pessoas contra inimigos imaginários ou contra aqueles que são de outra etnia ou religião.
Uma certa rudeza. Um desprezo pela lei. Um certo tipo de comportamento sexualmente intimidante. E aí por diante.
A questão que Shakespeare levanta, insistentemente, é como alguém com essas características, alguém que se comporta assim, pode alcançar o poder.
Porque as sociedades em geral se defendem contra personalidades desse tipo — normalmente, elas não sucumbem.
Então Shakespeare se pergunta como é possível que aquilo que parece ser um Estado saudável ou razoavelmente saudável, no qual a maioria das pessoas tem no fim das contas o próprio interesse, possa cair nas mãos de um líder realmente catastrófico ou de um tirano.
Como isso acontece?
— A sede de poder do tirano e seu desrespeito pelas normas nunca são suficientes, mesmo se ele for competente em sua criminalidade.
Um tirano é um mentiroso compulsivo, desavergonhado.
Um número pequeno de pessoas é enganado, mas a maioria entende que é uma mentira, então a pergunta é por que, se elas sabem disso, seguem adiante.
Porque estão com medo. O tirano em geral tem acesso ao poder e está disposto a usá-lo. Há pessoas que estão dispostas a obedecer ordens.
Há os que têm prazer em se associar às intimidações, como se pudessem obter uma parte do mesmo tipo de prazer que o tirano desfruta, ao menos em suas imaginações.
Há também pessoas que tendem a normalizar o que não é normal.
Shakespeare está interessado em personagens que, mesmo ao ver algo que não é normal, têm a tendência de tratar aquilo como se fosse.
Pensam que a situação não pode ser tão ruim assim. Acreditam que, mesmo desequilibradas, as coisas voltarão ao equilíbrio.
E há ainda aqueles que têm um estranho pendor para o esquecimento.
Não há nenhum atributo positivo nessas figuras tirânicas? Ricardo III não se mostra, por exemplo, sagaz, mesmo charmoso?
— O atributo positivo de Ricardo III não é ser charmoso, porque ele é uma espécie de figura grotesca.
Mas ele libera uma espécie de agressividade que as pessoas querem que seja liberada.
Ele diz as coisas que geralmente não podem ser ditas, porque são uma espécie de tabu, e as pessoas sentem um tipo de liberação ou de alegria.
E nós, como plateia, sentimos um enorme prazer nessa transgressão.
Ele diz a assassinos do herdeiro do trono: “Dos vossos olhos caem pedras, quando dos olhos dos tolos brotam lágrimas”.
Para por um segundo e continua logo em seguida: “Gosto de vós, moços”.
E todos rimos. Quando ele praticamente estupra Anne, está deliciado de ter feito isso e diz que é isso que quer de uma mulher.
E nós, de novo, rimos.
Tudo isso levanta comparações com Donald Trump. Por que o senhor não o menciona?
— Em primeiro lugar, eu não menciono Trump, mas não estou sob nenhum compulsão para não mencioná-lo.
Não vivo na Alemanha Oriental ou na Coreia do Norte ou na Inglaterra elisabetana para não dizer que Trump não é um tirano; se quisesse afirmar que Trump é um tirano, eu poderia fazer isso sem medo.
Se não faço acusações específicas contra ele é por razões diferentes de Shakespeare, portanto.
Poderia ser um pouco um tributo a Shakespeare. Mas, acima de tudo, é porque quero que o livro atual vá além do atual regime, assim como as obras de Shakespeare foram além dos regimes da época dele.
Alguns leitores viram muito de Trump em seu livro. Quanto de seu interesse na tirania em Shakespeare vem daí?
— Nosso interesse no passado não ocorre porque estamos afastados dele. Estamos interessados no passado, mas no que ele pode nos dizer sobre o presente.
De forma parecida, usamos o que temos disponível no presente para tentar entender o passado. Procurarmos nos engajar com o ontem para entender o agora.
Eu tento entender o que aconteceu há 400 anos, mas também para buscar entender o mundo em que vivemos.
O senhor disse que uma das características do tirano é a ilegitimidade. Em Shakespeare, qual é a linha que separa a legitimidade da ilegitimidade?
— Cada cultura é diferente, temos diferentes regras legais governando nossas culturas, e isso também na época de Shakespeare, assim como hoje.
O autor pensou que havia certos padrões de comportamento, certo desprezo pela lei, uma violação das normas, uma falta de interesse no bem coletivo, que mostram que há algo muito errado acontecendo em uma cultura.
Mas isso não é uma regra absoluta.
Entendo sua pergunta muito bem, e se você estivesse me perguntando seriamente sobre Shakespeare, eu diria que as primeiras comédias, como "Sonho de uma noite de verão" , terminam alegremente com o mandatário transgredindo a lei.
E Shakespeare espera que isso seja aplaudido, que essa seja uma boa solução.
O governante diz: “Vamos deixar a lei de lado”.
Mas em outras peças, especialmente nas históricas e tragédias, Shakespeare pensa que deixar a lei de lado é uma catástrofe.
Ele pensa, ao menos nas peças históricas, sobre como a sociedade está organizada.
Acredita que a dispensa autocrática da lei é um sinal de que algo se torna ilegítimo.
O senhor considera Trump ilegítimo?
— Essa é uma questão muito difícil. Oficialmente, pelos votos no colégio eleitoral, ele é o presidente eleito, apesar de ter perdido nos votos populares por quase três milhões e de agora parecer ter tido um sistema complexo de colaboração com forças estrangeiras e também domésticas.
Mas, até onde sei, no momento presente, Trump é o presidente legítimo dos Estados Unidos, apesar da investigação em andamento.
Há alguma esperança relacionada à tirania? Ou ela dura para sempre?
— É lógico que há esperança! Shakespeare viu isso muito bem. É claro que ele viu que as histórias poderiam terminar da maneira mais catastrófica possível, em guerra civil.
Mas viu também que havia múltiplas possibilidades para ser ao menos esperançoso. E há, no mínimo, duas diferentes explicações para isso.
Na primeira, Shakespeare acreditava na possibilidade de o indivíduo se levantar e se colocar à altura dos acontecimentos. Acreditava na possibilidade de um ninguém não apenas se recusar a fazer o que o tirano queria, mas de impedir essa coisa terrível de acontecer.
É possível para as pessoas comuns se colocarem contra a catástrofe.
Em Rei Lear, há esta figura ordinária, um servente sem nome, que impede o tirano de torturar alguém acusado de traição.
E a segunda possibilidade?
— É ainda mais esperançosa. Coriolano é sobre impedir a tragédia de acontecer antes mesmo que aconteça.
Isso se dá pela insistência nas normas da cultura, pela não suspensão das regras.
É isso o que os políticos comuns de Roma fazem em Coriolano .
Não são pessoas impressionantes em termos morais, mas se recusam a suspender as regras ou se comportar de maneira irregular.
Ao fazer isso, conseguem persuadir o povo de que isso não está de acordo com seu interesse, que o tirano não age de acordo com o interesse delas, mas com seu próprio interesse.
Por que a história de Adão e Eva, tema de seu livro anterior, faz tanto sucesso?
— O que me interessa em Adão e Eva, o que é profundo nessa história e a conecta com parte de nossa conversa sobre Shakespeare, é que ela parece incrivelmente simples, explica tudo e é muito curta.
Quando é analisada com rigor, percebe-se que há buracos e problemas muito profundos, nos quais você pode cair. Parece escrita por Franz Kafka.
Isso é inesperado e faz parte do brilho da história. Você pode se perguntar: como esses primeiros humanos, vivendo em inocência edênica, entenderam o aviso de que iriam morrer?
Como eles sabiam que coisa era a morte?
Por que obedecer a um comando para não comer da Árvore do Conhecimento do bem e do mal, se elas não sabem a diferença entre o bem e o mal?
Você então entra num espaço que foi ocupado há 2 ou 3 mil anos.
E Shakespeare entendeu isso profundamente.
Em geral, ele extrai explicações simples de suas histórias, mas na verdade nunca são de fato simples.
Por que Iago faz o que faz contra Otelo?
Por que Hamlet finge estar louco?
Por que Lear decide se aposentar?
Em cada um dos casos, não há uma explicação simples.