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DIA A DIA

Os índios não são coitadinhos, diz antropólogo
09/01/2019 - CLEIDE CARVALHO - O GLOBO

Poucos brasileiros foram alvo de tantos discursos e mudanças no novo governo quanto os indígenas.

O presidente Jair Bolsonaro disse que mantê-los em terras demarcadas, como prevê a Constituição, é "tratá-los como animais em zoológicos".

Transferiu para o Ministério da Agricultura a tarefa de demarcar terras indígenas e o secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Nabhan Garcia, ex-líder ruralista, anunciou que prepara uma revisão de demarcações de terras indígenas e titulações de áreas quilombolas.


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A Fundação Nacional do Índio (Funai) ficou com Damares Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pastora evangélica, para quem o novo presidente do órgão deve "amar desesperadamente" os índios.

Para o antropólogo Carlos Fausto, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, o que está em jogo é a propriedade da terra, em disputa no Brasil desde os tempos de colônia.

Para ele, os índios não são coitadinhos. São hoje organizados e vários projetos florescem em terras indígenas.

"O que se quer é que os indígenas virem peões, mão de obra barata", afirma.

A ENTREVISTA

O que significa para os povos indígenas a transferência da demarcação de terras para o Ministério da Agricultura?

— O desmonte do espírito do Artigo 231 da Constituição de 1988 (que garante aos índios as terras tradicionalmente ocupadas). Em grande parte, o novo governo quer ir contra aquilo que foi configurado pelos constituintes.

No fim do governo militar, houve um pacto da nação, e um dos acordos é sobre a existência de regimes diferenciados de propriedade, os regimes coletivos de uso da terra. Estamos falando de terras indígenas, quilombolas, áreas públicas de conservação e florestas nacionais.

O pacto da Constituição retirou um grande estoque de terras da União que poderia ser apropriado privadamente. Essa questão me parece ser um dos motores dessa mudança. Num certo sentido, ainda estamos contando uma história do latifúndio, muito transformada, muito atual, mas a mesma.

Por que os agricultores teriam de disputar áreas indígenas para crescer, e não outras áreas disponíveis?

— O Brasil imagina-se hoje como tendo uma agricultura muito moderna e uma agroindústria que não carrega em si o sistema do plantation colonial (produção em latifúndios de monoculturas voltadas à exportação e com uso de escravos). Vejo uma continuidade histórica nesse processo. A disputa pela terra é uma disputa crucial no Brasil.

A Constituição propôs uma regulação para uso diferente da apropriação, e isso provocou, ao longo de todos estes anos, o espírito de desfazer a Constituição de 1988. Essa mudança é o capítulo mais evidente.

Quais foram os episódios anteriores?

— A disputa sempre esteve no jogo. Quando não ocorreu do ponto de vista federal, ocorreu nos estados. No dia a dia, a exploração das terras indígenas continuou, com exploração de madeira, garimpos, entrada crescente de pessoas e o avanço das grandes fazendas sobre as terras indígenas, com sua exploração por grandes grupos.

Se sempre existiu, o que muda agora?

— O perigo agora, a irresponsabilidade, é que o governo federal deixa de ter papel de moderador nessa disputa. O governo assume um lado, coloca-se na posição de campeão de um dos lados, de que vai fazer o que não foi feito no passado. Quando um presidente escolhe um lado de um conflito histórico, ele produz um efeito monumental e perigoso de acirramento de violência.

Quais medidas podem ser mais perigosas?

— Não é só uma questão de medidas, mas da retórica de campanha que continua presente nesses primeiros dias de governo. O efeito que as palavras emanadas de Brasília têm sobre os conflitos locais é tremendo. As pessoas não se dão conta de que, quando um presidente fala, significa lá na ponta “podemos invadir”, “podemos matar”.

Como os indígenas estão se sentindo? Como podem agir?

— Há uma variação imensa de sociedades indígenas, não uma só. Em geral o sentimento é de medo, de raiva, mas existem hoje organizações indígenas bem articuladas e ponderadas.

Já houve carta de posicionamento da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (na qual os índios protestam e dizem que não podem ser tratados como seres inferiores).

Cabe à Procuradoria-Geral da República (PGR) defendê-los, e esperamos que as instituições funcionem adequadamente.

É uma pena que o Supremo Tribunal Federal, que tem função primordial, tenha queimado seu capital de autoridade moral nos últimos anos, com decisões monocráticas e bate-boca público pela TV.

A Procuradoria-Geral da República ainda não se manifestou.

— Por enquanto, o que há são decisões de governo, e não vejo possibilidade de questionamento legal. A PGR deverá se manifestar no momento em que for levada a fazê-lo.

Há até agora um desmonte do indigenismo oficial. O coração pulsante da Funai é a regularização fundiária. Ao retirar essa função dela, a instituição se torna fragilizada.

A atuação da Funai é questionada, os territórios indígenas são invadidos e explorados.

— Ruim com a Funai, pior sem ela. A Funai não é um órgão fantástico, mas é preciso lembrar que dentro da administração pública ela é um dos órgãos com menores recursos.

Mas há muitas comunidades indígenas vivendo na pobreza, dependentes de cesta básica do governo. Algumas nem sequer conseguem comercializar frutas que coletam.

— Há um equívoco de base na relação da sociedade com as comunidades indígenas. A ideia de que são coitadinhos não é verdade hoje, de modo algum. Várias estão muito à frente da venda de frutas. Há projetos que dão muito certo, de sementes, de cinema. Temos cineastas indígenas premiados no Brasil e no exterior.

O que se quer é que os indígenas virem peões, mão de obra barata. A ideia de que os índios estão isolados é uma falsidade absoluta. As terras indígenas têm seus projetos e eles começam a florescer. A Constituição garantiu aos índios o direito de organização social e jurídica, e eles se organizaram.

Conheci áreas indígenas muito pobres, no Maranhão, por exemplo.

— A pobreza não existe só em áreas indígenas. Os índios não estão em outro mundo, mas no mesmo em que está grande parte da população brasileira. Tem de olhar a estrutura regional e do entorno. O Maranhão tem os Índices de Desevolvimento Humano (IDH) mais baixos do Brasil.

O fato de a família Sarney ser protagonista desde meados da década de 60, e de José Sarney ter sido um dos presidentes do país, diz muito sobre o que está em jogo. Estamos falando de uma questão de estrutura e de distribuição de terras.

Mas por que querem justamente as terras indígenas?

— É mais barato investir em terras novas do que investir pesado em intensificação da produção. É racionalidade econômica. Do ponto de vista social e político é desastroso, sem falar da questão ambiental. É um comportamento irracional da agroindústria.

No norte do Mato Grosso, a área da Bacia do Xingu está secando. As secas são cada vez maiores e a destruição dentro das terras indígenas é monumental. Dentro de alguns anos não vai ter água para o agronegócio.

Estamos no último suspirar de uma visão que vai nos levar a uma catástrofe ambiental. Não estamos mais falando só dos índios, mas de todos nós.

Parte do agronegócio refuta a tese do aquecimento global, diz que ele não existe.

— Eu, como cientista, não tenho dúvida nenhuma de que ele ocorre. Estamos diante de uma cortina de fumaça e os indígenas estão servindo de espantalho. Este é um processo que tem a ver com o desmonte da Constituição de 1988. Pergunto-me se o STF será conivente com isso.

O velho Aureliano Chaves [1929-2003, foi vice presidente do general João Baptista de Figueiredo] dizia que a política é como estar um dia no vale, outro na cumieira. Mas vários grupos sociais podem pagar um preço alto demais por isso.

O ritmo de demarcação de terras indígenas diminuiu ainda no governo do PT.

— A demarcação veio desde o governo Collor. O ministro da Justiça da época, Célio Borja, teve papel importante, cumprindo a Constituição, e começou a homologar as grandes áreas indígenas. Fernando Henrique Cardoso deu continuidade à demarcação e fez também a reforma agrária. No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em menor grau, o processo continuou. A ex-presidente Dilma Rousseff estancou as demarcações. Claramente, ela não era simpática à causa.

O fato é que, de 1988 a 2010, houve um processo contínuo de demarcação, sem grande interferência dos níveis mais altos da política, à exceção da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Durante todos esses anos, houve conciliação do desenvolvimento agrícola com a criação de áreas de conservação e terras indígenas. Não é simples a decisão na cadeira de presidente. Mas Collor, Fernando Henrique e Lula fizeram o que prega a Constituição.

É possível rever a terra indígena Raposa Serra do Sol?

— Só rasgando a Constituição. Só fora do sistema jurídico atual. Ali é outra cortina de fumaça, porque as terras indígenas são da União. Os indígenas têm apenas o usufruto delas. Não são donos da propriedade nem do subsolo, onde estão os minérios. O nióbio em Raposa Serra do Sol não tem importância econômica alguma.

Temos a reserva de Araxá [MG] e há oito pedidos de exploração fora da Amazônia. O nióbio fora da terra indígena é suficiente para abastecer o mercado por 100 anos.

O problema é que nenhum governo conseguiu regulamentar a exploração mineral, compatibilizando com a preservação ambiental.

O senhor é favorável à exploração mineral em terras indígenas?

— É uma questão de regulamentar, não de impedir. As terras indígenas estão invadidas por garimpos ilegais e existem milhares de pedidos de concessão para exploração mineral na Amazônia. Muitos deles se sobrepõem. É uma bagunça.

Uma regulamentação bem-feita, discutida democraticamente e em função do interesse nacional é bem-vinda. Mas não pode ter o “por fora”, como vimos nos últimos anos, beneficiando grupos econômicos que corrompem as decisões.

E o uso econômico das terras indígenas?

— É muito estranho que em todos esses anos não tenha se chegado a qualquer regulamentação, tanto de exploração mineral quanto do uso econômico das terras indígenas. O que ocorre lá na ponta, todos os dias, é algo sem regulamentação. É bangue-bangue.

Qual a consequência dessa falta de regulamentação?

É a violência, um processo que explode com assassinatos de líderes comunitários e indígenas Brasil afora. É preciso pacificar de forma responsável, e isso não se faz com discurso. O discurso malfeito pode resultar em mais violência.


  

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