Pelé: meio século de um mito 20/04/2008
- Daniel Piza - O Estado de S.Paulo
Pelé está de azul como na final da Copa de 1958. Historiadores contam que o chefe da comissão técnica, Paulo Machado de Carvalho, teria dito para animar os jogadores da ¨canarinho¨ a respeito da mudança, antes do jogo, que a cor era a do ¨manto de Nossa Senhora¨. Pelé não se lembra disso. Sorridente como sempre, aos 67 anos nada aparentes, ele deu na terça-feira passada a primeira entrevista exclusiva sobre o cinqüentenário da primeira Copa conquistada pelo Brasil, no escritório da Pelé Prime, na Vila Olímpia, zona sul de São Paulo. E passou por essa e outras lendas como passava com a bola por seus marcadores.
Ele afirma, por exemplo, que estava pronto física e psicologicamente para o jogo da estréia, contra a Áustria, em 8 de junho. Até agora se dizia que sua estréia foi adiada porque ainda estava machucado. Pelé, no entanto, diz que era exclusiva do psicólogo da delegação, João Carvalhaes, a opinião de que ele e Garrincha eram muito jovens para assumir a responsabilidade. E também nega que tenha havido uma reunião em que os jogadores mais experientes praticamente teriam imposto ao técnico Vicente Feola a escalação da dupla e de Zito no terceiro jogo, contra a então União Soviética. Segundo Pelé, alguns como Nilton Santos já pediam a alteração, mas foi o mau desempenho da seleção nos dois primeiros jogos que convenceu Feola a lançar mão dos jovens craques.
Pelé também fala sobre seus colegas e diz que a seleção de 1958 tinha mais talentos individuais que a de 1970, embora esta fosse melhor como conjunto. Conta que também reclamava do excesso de dribles de Garrincha, que Nilton Santos sabia a hora certa de subir, que Didi era o maestro e Zito quem mais gritava em campo. Sobre Vavá, afirma que era melhor do que Ronaldo Fenômeno, porque mais completo. Outros jogadores de gerações seguintes também são comentados, como Zico, que Pelé diz ter sido seu maior herdeiro. Para Maradona, uma crítica, e das mais fortes.
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Foi do próprio Pelé a idéia de tirar fotos para o Estado com o rádio em que seu pai chorou a derrota de 1950 e festejou o triunfo de 1958. Ele sorri, olha para a câmera, segura o aparelho da marca Lafayette no ombro, a pedido do fotógrafo Jonne Roriz, e cantarola uns versos de Nat King Cole. Depois segura a réplica da Jules Rimet e a beija longamente. O filho de Dondinho, Edson, está sempre muito à vontade no papel de Rei Pelé. A cor do manto nunca fez a menor diferença.
Foi nesse rádio que seu pai ouviu a Copa de 50?
- E a de 58 também. Em 50 ele estava com os colegas do time (BAC, o Baquinho, time da segunda divisão profissional de Bauru) escutando o jogo no quintal de casa. Quando o Brasil perdeu, ele chorou e eu disse que iria ganhar uma Copa do Mundo para ele. Em 58 ele escutou por esse mesmo rádio nossa vitória na Suécia. E chorou de novo.
E essa TV verde-amarela?
- Foi outro prêmio que ganhamos em 58. Você viu como é pesada? Não existia TV no Brasil naquela época, embora a Copa tenha sido toda filmada. Hoje fico pensando nas facilidades de comunicação. Naquela Copa, eu não tinha nem telefone para ligar para meu pai depois da vitória e contar que o rei (da Suécia) tinha descido até o gramado para nos cumprimentar.
Você certamente sabe o que os escritores Mario Filho e Nelson Rodrigues disseram sobre a Copa de 58: que ali o Brasil venceu o complexo de inferioridade que tinha desde a derrota de 1950. Concorda?
- Na verdade, acho que foi o contrário. Me diziam que em 1950 já estava tudo certo para comemorar a vitória (sobre o Uruguai na final no Maracanã), que o Brasil não tinha respeitado o adversário. Em 58 respeitamos muito os adversários, mas sem medo. Nunca achamos que seria fácil.
Antes da Copa, você se lembra da primeira convocação para a seleção?
- Lembro, foi em 57. Lembro que ouvimos pelo rádio e não entendemos se o locutor tinha dito Telê (que então jogava pelo Fluminense) ou Pelé. Por sinal, até então viviam me chamando de Telê ou Pelê. Até o dia em que eu disse: ¨Olha, Telê é o loirinho, o crioulinho é Pelé¨. Eu nem gostava do nome Pelé, porque meu pai havia me dado o nome de um gênio, Edson (de Thomas Edison, inventor americano).
Você teve outros apelidos na seleção de 58, não? Gasolina, Elisa, Amadeu Bicudo...
- Gasolina foi ainda nos tempos do Santos, porque eu era muito rápido, explosivo. Elisa era por causa de uma torcedora do Corinthians que gostava de mim e, toda vez que eu chegava ao estádio, me mandava beijos. Amadeu Bicudo é porque eles diziam que tenho boca grande. Aí eu passei a gostar de Pelé... (risos)
E o dia da convocação para a Copa, você lembra?
- Lembro, foi muito emocionante, mesmo que eu já esperasse. Eu estava machucado, tinha batido o joelho numa partida contra o Corinthians. Mas o médico, dr. Hilton Gosling, e o Mário Américo (preparador físico) sempre disseram que eu teria condições para jogar. Foi por isso que fiquei fora dos amistosos na Itália.
Você disse que já esperava. Por quê? E por que não tinha ido ao Sul-Americano de 57?
- Acho que foi por causa das excursões do Santos. Eu esperava ir para a Copa de 58 porque tinha jogado bem na Copa Rocca e também ia bem nos treinos. Eu já era o titular do time.
Já usava a camisa 10? Porque dizem que foi um membro uruguaio da Fifa que determinou os números dos jogadores, pois o Brasil enviou a escalação sem eles...
- É verdade. Mas eu já vinha usando a 10, embora às vezes usava a 8... Não era nada fixo. A partir da Copa é que o número passou a ser associado a mim. Viu aquela bola ali? (Aponta para um cubo de vidro com uma bola amarela pequena dentro, com inscrição em inglês.) ¨Antes dele, 10 era apenas um número¨...
Você lembra quanto pesava e media? Era mais franzino do que estaria nas Copas seguintes.
- Era, sim. Acho que pesava 68 kg e media 1m70. Com topete, ficava 1m71... (risos)
É mesmo verdade que você gostava de treinar?
- Sempre gostei de me preparar fisicamente. Habilidade, dom, muita gente tem. Mas meu condicionamento físico era privilegiado. Eu corria bastante, subia e descia aquelas escadas... E ficava sempre mais um tempo, cobrando faltas, treinando a esquerda. O pessoal ia embora sem ter nada para fazer.
Apesar de titular, você não tinha mesmo condições físicas para o jogo de estréia contra a Áustria?
- Eu estava pronto, sim. Não sei se preferiram esperar um pouco por eu ser jovem... O psicólogo, dr. Carvalhaes, havia dito que eu e Garrincha éramos muito jovens, porque a gente vivia fazendo brincadeira, molecagem.
Mas o técnico (Vicente Feola) e o dr. Paulo Machado de Carvalho (coordenador da delegação) também achavam isso?
- Não, não achavam. Eles e o Mário Américo sempre disseram que a gente ia jogar. Depois do empate com a Inglaterra, aí eles viram a necessidade. Mesmo na vitória por 3 a 0 sobre a Áustria não tínhamos jogado bem.
Por quê?
- O jogo não fluía. Os outros times eram fortes, corriam muito, e nossa qualidade era o toque de bola. Talvez com o Vavá e o Altafini (Mazzola, a quem Pelé se refere sempre como Altafini), que tinham estilos muito parecidos, não estivesse dando certo. E além de mim e do Garrincha entrou também o Zito, que não era tão técnico como o Dino Sani, mas tinha muito fôlego e visão de jogo.
Diz a lenda que Bellini, Nilton Santos e Didi foram pedir para vocês três jogarem, é verdade?
- Não foi bem assim. Alguns jogadores eram consultados pela comissão técnica, como o Didi e principalmente o Nilton Santos. O Nilton Santos vivia dizendo para o Feola, até de brincadeira, ¨o time é Pelé, Garrincha e os outros, senão não vai dar¨.
Dizem também que Garrincha tinha sido vetado porque deu dribles demais no amistoso contra a Inter de Milão.
- O Feola realmente reclamava de quando a gente driblava muito. Eu mesmo reclamava do Garrincha porque às vezes ele passava por dois, eu sabia que ele ia passar e então eu corria para a área e ele não cruzava, dava outro drible para trás... Eu xingava muito! (risos)
Mas é verdade que o Feola dizia ¨Do meio para a frente, joguem à vontade¨?
- Ele se preocupava mais em acertar a defesa. E pedia sempre para a gente ser objetivo. Isso foi fundamental. Ele também sabia que não tinha como evitar que eu, o Garrincha, o Didi e o Vavá fôssemos para cima. Era nossa característica. Mas o Zito marcava muito bem; o Zagallo também, pela esquerda. Os laterais sabiam quando subir e quando não subir.
Ele teria gritado para o Nilton Santos no primeiro jogo ¨Volta, volta!¨ quando ele partiu com a bola e foi até marcar o gol. E teria dormido num dos jogos.
- Eu não ouvi isso. Até porque o Nilton Santos fazia muito isso no Botafogo, com o próprio Zagallo, que tabelava com ele e cobria suas subidas. O Feola parece que cochilou num momento ali e então pegaram no pé dele. Mas ele via tudo.
O técnico só foi definido em abril, a escalação não tinha números, foram só duas semanas de treino, você e Garrincha só entraram no terceiro jogo. Houve falta de planejamento? Ou o trabalho de Paulo Machado de Carvalho fez diferença? João Havelange era presidente da CBD (atual CBF) desde janeiro daquele ano. Havia uma obsessão em ganhar a Copa?
- Tínhamos vontade. E houve um trabalho bastante bom de organização, sim. Tinha comissão técnica pela primeira vez e um grupo excelente de jogadores que se con heciam. Naquela época não havia material como hoje, e nos amistosos nem podíamos trocar de camisa.
O Mazzola fez dois gols na estréia. Mesmo assim, acabou saindo do time para você entrar.
- Acho que o Vavá estava melhor para fazer a função de homem de área. Garrincha caía pela direita e Zagallo pela esquerda. O Didi e eu vínhamos do meio, eu mais do que o Didi. Sempre parti em direção à área, mais ou menos como o Kaká faz hoje.
O time tinha Didi, Nilton Santos, Zito, Garrincha e você, os maiores craques. Mas e o Vavá? Ele foi importante com seus 5 gols, não?
- Claro que foi. Era um grande jogador. Não tinha tanta habilidade, mas não falam aí do Fenômeno (Ronaldo, segundo maior artilheiro da seleção)? Vavá era mais completo do que ele, antes de mais nada porque cabeceava muito bem.
E o papel do Didi?
- Ele era o maestro. Sem ele para dar lançamentos e passes o time não teria ido tão bem.
Contra o País de Gales você fez o único gol do time. Uma vez disse que foi o gol mais importante da sua vida. Ainda diz?
- Foi, no sentido de que ali tudo se fixou.
Você dá uma puxada na bola, num espaço curto dentro da área. Já tinha feito aquela jogada antes?
- Não, imaginei ali mesmo. Foi um meio-chapéu, um... Era a única forma de tirar o zagueiro da jogada.
Você é o inventor de outras jogadas, como a paradinha na cobrança do pênalti e a tabelinha com a canela do adversário. Tem algum lance do futebol atual que você gostaria de ter feito? A pedalada?
- Não... O que eu sempre tentei fazer, ficava ensaiando nos treinos, era a carretilha, em que você prende a bola e usa o calcanhar para jogá-la por cima. Mas não saía... O Caneco, ponta do Santos, vivia fazendo isso. Eu nunca tive coragem de tentar num jogo.
Em 24 de junho foi o jogo contra a França. Fontaine não jogava. Mas era o time a bater naquela Copa?
- Era o que mais preocupava. Eu me lembro da gente conversando na concentração sobre o jogo deles, que já tínhamos visto. Lembro o Bellini dizendo ¨O ataque deles é muito bom¨, algo do gênero. Respeitávamos muito a França, mas também confiávamos em nós.
A França saiu na frente... Depois o Brasil fez 5 x 2, com três gols seus.
- É verdade. Mas aí começamos a jogar melhor e ganhamos até com facilidade. Era o jogo que ia ser o mais difícil e terminou sendo o mais fácil. O futebol é assim.
Seu terceiro gol é o mais bonito que já fez? Um menino de 17 anos dar chapéu dentro da área em Copa do Mundo é algo raro...
- É um deles, certamente. Depois na final contra a Suécia eu praticamente fiz outro igual.
No último gol contra a Suécia, de cabeça, a trajetória da bola é proposital? Ela faz uma espécie de parábola por cima do goleiro.
- Foi proposital, sim. Raras vezes eu vejo um gol assim. Mas quando a bola vem muito alta, é a melhor maneira de enganar o goleiro, encobrindo até o outro canto.
É verdade que o Paulo Machado de Carvalho disse que o azul era a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida para animar os jogadores?
- Também não ouvi isso. A gente não se importou de jogar de azul. (Mostra a camisa numa estante ao lado.) E ela é muito bonita, não?
Como você compara a seleção de 58 e a de 70?
- A de 58, se você analisar jogador a jogador, tinha mais talento, individualmente. Mas a de 70 jogava melhor, era mais compacta. Todo mundo voltava, menos o Tostão e às vezes o Jairzinho. Então saíamos com velocidade, aproveitando os lançamentos do Gérson. A de 58 era mais ofensiva.
O curioso é que ela teve a defesa menos vazada da Copa. Era boa defesa, não?
- Era. Tinha o De Sordi pela direita, substituído no último jogo pelo Djalma Santos, e o Nilton Santos pela esquerda, com Bellini e Mauro no meio. Era muito experiente.
O Bellini era capitão, mas pelo que você conta o Zito, o Didi e o Nilton Santos eram os que mais gritavam e orientavam, não?
- Eram. O Zito era chato pra caramba... (risos) O Didi vinha falar sempre que a bola parava: ¨O Zagallo precisa voltar, o Pelé tem de soltar mais a bola¨... O Nilton Santos também falava, e o Orlando lá do banco de reservas. Era um grupo muito sério e unido.
Depois de 6 gols em 4 jogos e se consagrar como o rei do futebol, você como jogador ainda melhorou depois de 58 ou já atingiu o patamar?
- Melhorei, sim. Eu não cabeceava tão bem ainda e não chutava tão forte com a esquerda. Na Copa de 70 você vê como faço mais essas duas coisas.
Seu ídolo maior era o Zizinho? Por quê?
- Porque ele era um jogador completo. Chutava com as duas, cabeceava, tinha velocidade. Eu sempre tentava imitar o que ele fazia.
E você ainda não comemorava os gols com um soco no ar.
- É verdade, isso só veio em 59, num jogo contra o Juventus, quando a torcida me vaiava. Foi um desabafo, depois incorporei aquilo.
Você vaiado?
- O Santos só ganhava de goleada, especialmente na Vila, e quando o time jogava mal, quando eu não conseguia fazer gol, a torcida ficava decepcionada. Mas não era como hoje, que eles chamam o cara de gênio numa semana e na seguinte o vaiam.
Por quê?
- Porque hoje tem poucos talentos. No meu tempo, era preciso esperar um ano, dois anos, até realmente alguém poder dizer quem era craque.
Em sua época e depois, sempre apontaram outros Pelés. Quais você realmente admira?
- Eu gostava muito do Di Stéfano.
Melhor que o Maradona?
- Melhor. Mais completo e rápido, fazia muito mais gols.
Quem mais?
- Ih, falaram do Sívori, do LaBruna, do Dirceu Lopes, do Cruyff...
O Zico foi chamado de ¨Pelé branco¨, e o Ronaldo e o Ronaldinho foram comparados com você quando brilharam no Barcelona.
- O Zico realmente foi o mais próximo de mim em estilo de jogo. Batia faltas, dava passes, fazia gols, entrava driblando na área. O Ronaldinho tem muita habilidade, mas decepcionou na Copa. O Robinho também sofreu com essa comparação. Em termos de aproveitamento, acho que o Romário foi o melhor. Esse sabia fazer gols. Meu negócio nunca foi ficar equilibrando a bola na nuca. Eu queria era fazer gols.
É um peso desnecessário sobre eles, não é?
- Claro que é. Acho que precisa ter mais paciência. Outra coisa: hoje o jogador precisa pedir para a torcida levantar. A gente fazia a torcida levantar com nosso futebol. Isso não é saudosismo. Realmente havia mais jogadores de qualidade. A gente fazia a bola correr, hoje agora quem corre são os burros. (risos)
E o Maradona?
- Foi um jogadoraço, mas veja bem: não chutava com a direita, não cabeceava... não era completo. E tem outra coisa. Por que tantos atletas olímpicos perdem medalhas quando pegos em doping e ele não?
Pelé, qual a melhor foto já feita de você? Aquela do coração feito pelo suor na camisa? Ou aquela da aura de luz ao redor de sua cabeça?
- A do coração. Mas a do ¨anjo¨ é ótima também. Sabe o que era aquilo? A tuba da banda que executava o hino antes de começar o jogo.
Você deve conhecer a frase de Drummond: ¨Fazer mil gols como Pelé não é difícil. Difícil é fazer um gol como Pelé.¨ É a melhor frase sobre você?
- É, essa é difícil de superar. Mas eu também gosto da do Fernando Henrique (Cardoso), ¨o Pelé é o Brasil que deu certo¨.