De novo, a Argentina em crise 19/06/2008
- O Estado de S.Paulo
A presidente Cristina Kirchner levou seu país, em apenas sete meses de mandato, à mais grave crise política desde a queda de Fernando de la Rúa, quando o Estado argentino quebrou e chegou ao fim, de maneira desastrosa, a fantasia da paridade entre peso e dólar. Agora, como naquela ocasião, os argentinos sofrem as conseqüências de uma orientação econômica teimosamente irrealista, mais empenhada na ocultação dos problemas do que na sua solução. Já não há como disfarçar a inflação elevada, e as condições de abastecimento apenas foram agravadas pelo prolongado conflito entre o governo e o setor agropecuário, pressionado por uma carga adicional de impostos, tabelamentos de preços e restrições às exportações.
A solidariedade da classe média aos produtores rurais, com a reedição dos tradicionais panelaços, converteu em pressão política o descontentamento com os preços e com a desorganização crescente da economia. A fratura do peronismo, com o surgimento de uma dissidência liderada pelo ex-presidente Eduardo Duhalde, levou a crise ao interior do Partido Justicialista, a principal força da coalizão de governo.
Pressionada por todos os lados - Cristina Kirchner está, há quase cem dias, sendo abertamente desafiada pelos agricultores e criadores, sua popularidade está em queda livre e já não conta com o apoio incondicional dos governadores justicialistas - a presidente argentina decidiu enviar ao Congresso um projeto de lei de elevação dos impostos sobre os grãos exportados. O esforço, nesse caso, é para conferir legitimidade democrática à política de ´´retenciones móviles´´, isto é, de tributação variável segundo as cotações dos alimentos exportados. Na verdade, trata-se de uma rendição, pois os produtores exigiam que as medidas baixadas por decreto em 11 de março - e que desencadearam a reação do campo, com o bloqueio de estradas e os conseqüentes problemas de abastecimento - fossem discutidas pelo Congresso.
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Ao tributar a exportação, o governo procurou reforçar o Tesouro, tirando um proveito extra dos bons preços internacionais, além de limitar o volume de vendas ao exterior para ampliar a oferta interna de alimentos.
Intervenções no comércio exterior para favorecer o abastecimento interno já ocorreram noutras ocasiões, na Argentina, sempre com pouco ou nenhum resultado além da irritação dos produtores. Desta vez, ao elevar as alíquotas de ´´retenciones´´, o governo procurou reforçar sua malsucedida política de controle de preços. Essa política foi adotada no final do mandato do presidente Néstor Kirchner, antecessor, marido e mentor da atual presidente, além de principal dirigente do Partido Justicialista e organizador dos truculentos piquetes de apoio ao governo.
O controle de preços consistiu no tabelamento e em acordos com o comércio varejista. Parte do comércio respeita ou aparenta respeitar o tabelamento, mas os produtos somem das prateleiras - para serem encontrados em pequenas lojas, onde são vendidos por preços mais altos. Incapaz de controlar a inflação, Néstor Kirchner mandou maquiar os indicadores oficiais. Cristina interferiu ainda mais na produção dos índices, contribuindo para sua completa desmoralização. Pelos dados oficiais, os preços ao consumidor subiram 9,1% nos últimos 12 meses. Estimativas não oficiais ficam em torno de 25% e as projeções para os próximos 12 meses passam dos 30%.
O forte crescimento econômico, depois de longa e profunda recessão, ajudou o governo argentino a disfarçar as insuficiências de sua política. Mas os problemas são cada vez mais evidentes. Os investimentos na infra-estrutura, especialmente no setor energético, foram desencorajados pelo controle de tarifas. Isso expôs a Argentina à escassez de gás e de eletricidade, em parte atenuada pelo fornecimento de energia brasileira. A credibilidade do país continua baixa. Sua dívida pública só tem sido rolada graças à compra de papéis do Tesouro pelo governo venezuelano.
O envio ao Congresso do projeto de ´´retenciones´´ não passa de mais um truque. O governo aposta na maioria parlamentar para legitimar o decreto de março. Mas essa maioria pode lhe faltar e nada garante que os produtores aceitem o imposto, mesmo aprovado pelo Congresso. A melhor solução para a crise - enfrentar a realidade - continua fora da agenda oficial.