Abate humanitário é ampliado no Brasil, mas divide opiniões 01/09/2008
- Roberto de Oliveira - Revista da Folha
Galinha, boi e porco nascem predestinados a servir à humanidade. A carne de todos eles vai à mesa. A pele de um vira casaco e sapato, os ossos, botão e gelatina. A discussão é como conseguir manejá-los de uma maneira que amenize o sofrimento. Oferecer uma morte menos dolorosa é o propósito do chamado abate humanitário, às vésperas de passar por uma revisão inédita no Brasil.
Pela primeira vez, uma parceria entre uma ONG internacional, a WSPA (sigla em inglês para Sociedade Mundial de Proteção Animal), com sede em Londres, e o Ministério da Agricultura prevê uma campanha do Programa Nacional de Abate Humanitário, que terá início em 2009.
Como diz a veterinária Charlí Ludtke, 30, da WSPA, coordenadora do programa, carne é uma responsabilidade de todos. ¨De quem produz, de quem abate e até de quem a consome.¨
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Cinco profissionais, entre zootecnistas e veterinários, começam a ser treinados em outubro para percorrer 700 frigoríficos de Santa Catarina, do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo nesta primeira etapa do projeto.
As normas do abate humanitário de suínos, aves e bovinos vão ser transmitidas por meio de DVDs, apostilas e aulas práticas e teóricas. A ação conjunta de uma ONG internacional e do governo brasileiro segue o modelo consagrado em países desenvolvidos. Na Inglaterra, por exemplo, a Universidade de Bristol age em parceria com frigoríficos britânicos, para desenvolver técnicas de abate humanitário, dando cursos e treinamentos de capacitação, inclusive no quesito transporte, o que é obrigatório em toda a União Européia. Lá, ao contrário do que ocorre no Brasil, os condutores precisam passar por um programa sobre o bem-estar animal antes de sair pelas estradas transportando carga viva.
Por aqui, a idéia é ensinar, por exemplo, a carregar animais de fazendas e granjas para os frigoríficos de modo que eles não sofram tanto durante o trajeto. O embarque e o desembarque devem ser feitos de uma forma mais tranqüila, que atenda às boas práticas de manejo.
Matadouros e abatedouros do Estado de São Paulo são obrigados, desde 1995, a utilizar métodos científicos e modernos que impeçam o abate cruel de animais. Mas nem todos seguem a lei. O índice de carne clandestina varia de 20%, nas regiões mais abastadas, a 60%, nas mais pobres do país. Nesses casos, o abate é feito ainda de forma primitiva, cruel e violenta. ¨O transporte é muito precário. Os animais sofrem durante o trajeto: bois são pisoteados, frangos acumulam fraturas e machucados. No abate, suínos são esfaqueados com punhaladas no coração e jogados em tanques para escaldadura, muitas vezes ainda vivos¨, critica Sônia Fonseca, presidente do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal.
Uma das líderes do movimento para que o abate humanitário se tornasse lei em São Paulo, Sônia é categórica: ¨É claro que não existe forma boa de matar, mas, no momento, o abate humanitário é uma maneira de diminuir um mal que não podemos evitar¨.
Bem-estar X abolição
É aí que, com o perdão do trocadilho, a porca torce o rabo. Na opinião de alguns defensores dos animais, pouco importa colocar música clássica para os bois ouvirem ou colorir as granjas com tampinhas de garrafa para as galinhas ¨brincarem¨ se o destino é um só: a morte.
O abate humanitário não é visto com bons olhos por todos os ativistas. Dentro das organizações de defesa animal, existem duas correntes: a do bem-estarismo e a do abolicionismo. A primeira prega melhores condições de criação e abate, como é o caso da WSPA, parceira do governo nesse projeto. A segunda clama pelo fim da exploração animal.
Nesta última, enquadra-se a entidade do nutricionista George Guimarães, 34, presidente do Veddas (Vegetarianismo Ético, Defesa dos Direitos dos Animais e Sociedade). Para ele, qualquer ação que vise a melhorar o bem-estar animal tem interesses comerciais e perpetua a exploração, porque cria na população a falsa impressão de que eles têm uma vida digna. ¨Os animais não têm interesse em serem explorados. Dentro desse cenário, essa ação é contraproducente.¨
Nina Rosa, 64, presidente do instituto que leva seu nome, segue o mesmo raciocínio de George. Segundo ela, de humanitário, esse abate não tem nada. ¨Ele prejudica o trabalho de sensibilização das pessoas¨, acha ela. ¨É uma anestesia de consciência.¨ O instituto lançou um documentário chamado ¨A Carne é Fraca¨, sobre o consumo da carne e suas conseqüências. Feito em quatro idiomas -- português, francês, inglês e espanhol --, o vídeo, que está sendo distribuído para 400 organizações em todo o mundo, conta a ¨trajetória de um bife¨, desde o nascimento de bezerros e frangos até o abatedouro. Contém cenas chocantes.
A criação intensiva de animais para consumo humano, na avaliação da ativista paulistana, é a maior causa do aquecimento global. ¨Fazem queimadas para dar lugar ao pasto e para plantar grãos para alimentar bois -isso sem contar o assoreamento dos rios. E não podemos esquecer que a floresta amazônica está sendo devastada para virar pasto.¨
Como precisa de grandes pastagens, o gado normalmente é criado longe da área de consumo, o que implica emissão de carbono para o transporte da carne e, em muitos casos, desmatamento da região. Este é considerado o primeiro fator de deslocamento da fronteira agrícola, com efeitos diretos sobre a floresta amazônica.
O ¨grito¨ das entidades encontra eco em órgãos oficiais. Estudos da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) mostram que a criação de animais para consumo humano é realmente uma das maiores causas de problemas ambientais, incluindo aí o aquecimento global, a degradação da terra, a poluição da água e do ar e a perda da biodiversidade. Há até uma pesquisa que revela que ela seria responsável por 18% do efeito estufa, com a participação direta da produção de ração para animais, à base de grãos.
Na Europa e nos EUA, não faltam iniciativas anticarne ancoradas na problemática ambiental. O ex-beatle Paul McCartney, vegetariano veterano, lançou em junho na Inglaterra o ¨Meat Free Mondays¨ (segundas-feiras livres de carne), com a intenção de encorajar os carnívoros a consumir comida vegetariana ao menos uma vez por semana, citando o comunicado da ONU como uma boa medida para cortar a carne do cardápio.
Uma das organizações mais ativas (e polêmicas) do mundo é a norte-americana Peta (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, da sigla em inglês).
Só para ter uma idéia de uma de suas controvérsias, a entidade chegou a comparar os matadouros a campos de extermínio nazistas. Dona de uma ousada campanha a favor do vegetarianismo, a Peta decidiu, no mês passado, centrar fogo em carnívoros famosos na sua mais recente empreitada contra a morte dos animais.
Sônia, do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, rejeita essa divisão entre as ONGs. ¨No fundo, todos somos abolicionistas. Não tenho pretensão de impedir que as pessoas comam carne. Se isso não é possível no momento, por ora, vamos minimizar o sofrimento dos animais¨, defende.
O problema é que uma questão permanece aberta: o brasileiro não dispõe de ferramentas para identificar, na hora da compra, se o produto obedeceu às normas de bem-estar animal durante a criação e o abate, como é comum na Europa e em parte dos EUA.
Abate humanitário minimiza perdas econômicas
Não é só a preocupação com o bem-estar animal que está por trás do abate humanitário. Estudos no Brasil e no exterior revelam que ele minimiza as perdas econômicas. Se o animal estiver estressado na hora do abate, sua carne poderá ser de qualidade inferior. Pesquisas mostram que até 50%Abate humanitário minimiza perdas econômicas, apontam estudos dos bois chegam ao abate com pelo menos um hematoma. Com isso, o produtor perde, em média, 400 g de carne, que é retirada da carcaça por ser inadequada ao consumo.
Os hematomas têm origem no manejo inadequado, envolvendo as equipes das fazendas, dos frigoríficos e dos transportadores.
Entre suínos, levantamento da veterinária Charlí Ludtke mostra que o uso de bastão elétrico aumentou em 13% um defeito de qualidade na carne, o PSE (sigla em inglês para ´´pálida, mole e que não retém água¨), causado pelo estresse intenso.
Governo, produtores e frigoríficos reconhecem que o abate humanitário é uma tendência. ¨Não podemos menosprezar o trabalho de ONGs que se preocupam com o sofrimento animal¨, diz Nelmon Costa, 52, diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura.
Os EUA, o Japão e o Canadá cobram dos exportadores uma ação humanitária.
A União Européia editou uma norma que, a partir de 2012, vai impedir a importação de animais criados em sistema que não permita seu total conforto. Daí a preocupação brasileira vir ganhando corpo.
O país é um dos maiores vendedores de carne do mundo. Lidera o ranking bovino, com 1,4 milhão de toneladas (US$ 4,4 bilhões), e o de frango, com 3,2 milhões de toneladas (US$ 4,6 bilhões). Entre os exportadores de carne suína, ocupa a quarta posição: 605,2 mil toneladas (US$ 1,2 bilhão), segundo o Ministério da Agricultura. Apesar dos avanços, o governo reconhece que melhoras devem ser feitas. De uma coisa ninguém mais duvida: o bem-estar animal está em pauta na agenda mundial.