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DIA A DIA

Lévi-Strauss, último gigante do pensamento francês, faz 100 anos
25/11/2008 - Folha Online

O etnólogo e antropólogo Claude Lévi-Strauss, um dos maiores intelectuais do século 20, completa na próxima sexta-feira (28), cem anos de idade. Conhecido no mundo inteiro com fundador da antropologia moderna, Lévi-Strauss é o último gigante do pensamento francês.

Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, em 28 de novembro de 1908, de pais judeus e franceses. Após estudar direito e filosofia na Universidade de Sorbonne, na França, Lévi-Strauss inicia seu grande projeto intelectual quando, em 1934, é convidado pela recém-fundada USP (Universidade de São Paulo) para lecionar sociologia.

Não foi, contudo, em São Paulo e em outras cidades brasileiras por onde passou que encontrou as referências fundamentais de seu pensamento. Durante três anos vivendo no Brasil, faz várias excursões para o Centro-Oeste e o Norte do Brasil e, em contato com índios cadiuéus, bororos e nambiquaras, começa a esboçar as bases do estruturalismo, corrente que revolucionaria a antropologia em meados do século 20.


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As várias missões etnológicas e as experiências em Mato Grosso e na Amazônia foram contadas em seu terceiro livro ¨Tristes Trópicos¨ (1955), também considerado uma espécie de autobiografia intelectual. É tida por muitos como a obra-prima do etnólogo, em que ele fala de certa desilusão com alguns paradigmas do pensamento civilizado europeu.

Estruturalismo

A experiência com os indígenas possibilitou a formulação de uma nova percepção sobre o pensamento primitivo, não mais inferiorizado sob olhos do colonizador, mas colocado por Lévi-Strauss como assentado nas mesmas bases do pensamento moderno ocidental.

Em obras como ¨As Estruturas Elementares do Parentesco¨ (1949), ¨Antropologia Estrutural¨ (1958), o etnólogo aplica ao conjunto dos fatos humanos de natureza simbólica o método estruturalista, que permite discernir formas invariáveis dentro de conteúdos variáveis.

Em ¨O Pensamento Selvagem¨ (1962), Lévi-Strauss demonstra que não há uma verdadeira diferença entre o pensamento primitivo e o moderno. ¨Não se trata do pensamento dos selvagens e sim do pensamento selvagem. É uma forma que se atribui a toda Humanidade e que podemos encontrar em nós mesmos, mas preferimos, no geral, buscá-la nas sociedades exóticas¨, explicava.

As obras fundamentais foram lançadas bem depois de sua curta temporada no Brasil. De volta a Paris pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, foi convocado para combater em 1939, mas deu baixa por causa da origem judia. Em 1941, se refugiou nos Estados Unidos, dando aulas em Nova York, onde conheceu o lingüista Roman Jakobson, que teve uma grande influência sobre seu pensamento.

Lévi-Straus notabilizou-se também por sua atenção entre as relações entre a cozinha e a cultura. Na obra ¨Mitológicas¨ (1964-71), ele ilustra a oposição entre a natureza e a cultura, utilizando as noções de alimentos crus e cozidos, frescos e podres, molhados e queimados, por exemplo. Com isso, seria possível alcançar generalizações sobre o pensamento humano.

Influência

Para a maior parte do meio acadêmico brasileiro, a influência de Lévi-Strauss se deu bem depois de sua partida da USP. O etnólogo alcançou notoriedade entre os antropólogos brasileiros entre os anos 50 e 80, principalmente. Recentemente, no entanto, tem sido redescoberto em especial pelos procedimentos, especialmente pela atitude do antropólogo em se deixar guiar pelo pensamento do outro.

Atualmente Lévi-Strauss vive recolhido no apartamento que viveu nos últimos 50 anos em Paris e recebe poucos amigos. Com sua silhueta delgada, seus cabelos brancos e olhar agudo, Claude Lévi-Strauss é intimidantemente tímido, mas tem uma presença imponente e uma grande capacidade de ouvir.

Em uma das poucas entrevistas que deu nos últimos anos (em 2005), depois de evocar sua ¨dívida para com o Brasil¨, afirmava: ¨vamos para uma civilização em escala mundial. Na qual provavelmente aparecerão diferenças, ao menos é preciso esperar por isso (...). Estamos num mundo ao qual já não pertenço. O que eu conheci, o que eu amei, tinha 1,5 bilhão de habitantes. O mundo atual tem 6 bilhões de humanos. Já não é o meu mundo¨.

Obras capitais

As Estruturas Elementares do Parentesco (1949) - Marco fundador da antropologia estrutural, o livro foi escrito durante o exílio nos EUA e sob a direta influência de seus contatos intelectuais e amizade com o lingüista Roman Jakobson.

O conceito que dá título ao livro refere-se aos sistemas de parentesco que prescrevem o casamento com um certo tipo de parentes, ou seja, que classificam os parentes em cônjuges possíveis e proibidos.

A obra é um clássico também por ter substituído, como eixo de análise etnológica, o fato natural da consangüinidade pelo fato cultural da aliança.

Lévi-Strauss, em diálogo com Sigmund Freud, repensa o problema universal da proibição do incesto -- fenômeno já não mais interpretado pela óptica da proibição moral, e sim como fator lógico de constituição da sociedade, ao permitir a ¨transação¨ de mulheres entre os grupos exogâmicos.

Introdução à obra de Marcel Mauss (1950) - Este ensaio, encomendado pelo sociólogo Georges Gurvitch --mais tarde, bastante hostil às teses de Lévi-Strauss--, vai bem além de sua finalidade imediata, uma apresentação protocolar da coletânea ¨Sociologia e Antropologia¨, de Marcel Mauss (ed. Cosac Naify), um dos mais importantes cientistas sociais do século 20.

Lévi-Strauss comenta o vanguardismo de Mauss em aspectos como a correlação entre etnologia e psicanálise, mas também, com ousadia, designa o sobrinho de Durkheim como um Moisés que conduziu o povo à Terra Prometida sem ter tido a oportunidade de entrar nela.

Com essa metáfora bíblica, quis dizer que Mauss, com a teoria da reciprocidade desenvolvida em ¨O Ensaio sobre a Dádiva¨ (1925), intuiu descobertas a que a antropologia só pôde chegar mais tarde, com o próprio Lévi-Strauss, graças aos aportes da lingüística estrutural.

Exemplo disso seria o conceito lévi-straussiano de ¨pensamento simbólico¨ como lógica inconsciente do espírito humano e matriz universal de possibilidades combinatórias das quais cada sistema cultural faz usos peculiares.

Tristes Trópicos (1955) - Considerada por muitos sua obra-prima, esta autobiografia intelectual relata, entre outros episódios, a vinda de Lévi-Strauss ao Brasil nos anos 1930, juntamente com outros professores franceses, para trabalhar na fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Ele comenta o sentido de sua vocação de antropólogo, no contexto de suas decepções com a filosofia ¨metafísica¨ dominante nos meios universitários franceses da época.

Menciona a geologia, o marxismo e a psicanálise como as ¨três mestras¨ inspiradoras de sua obra, pela percepção que compartilham de que ¨compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outro¨. E tece observações etnográficas que atestam como seu contato com povos indígenas brasileiros foi decisivo na gestação de sua futura teoria estruturalista.

O livro é marcante também pelas digressões sombrias a respeito das perspectivas da civilização mundial, marcada, segundo ele, pelo inchaço demográfico e pela homogeneização cultural.

Antropologia Estrutural (1958) - Coletânea com alguns dos principais escritos de Lévi-Strauss no período entre 1944 e 1956.

São exemplos o programático ¨A Análise Estrutural em Lingüística e em Antropologia¨, além de ¨O Feiticeiro e Sua Magia¨ e ¨A Eficácia Simbólica¨ -- textos nos quais apresenta surpreendentes paralelos estruturais entre as figuras do xamã e do psicanalista.

Muitas vezes acusado pelos marxistas de negar a dimensão histórica, dada sua ênfase tanto na sincronia dos fenômenos sociais quanto nas constantes universais da humanidade, o autor francês irá abordar tal problema em ¨História e Etnologia¨.

Já em ¨A Estrutura dos Mitos¨, o antropólogo relê o mito de Édipo -- mencionando a interpretação freudiana como a mais recente ¨versão¨ mítica do relato -- e lança as bases teóricas e metodológicas do que, após o parentesco, veio a ser o outro grande campo de aplicação do estruturalismo etnológico: a mitologia.

O Pensamento Selvagem (1962) - Lançado no mesmo ano que ¨O Totemismo Hoje¨ -- que lhe serve, no dizer do autor, como uma ¨introdução histórica e crítica¨, ao analisar uma categoria então fundamental na explicação dos povos ditos primitivos --, é uma espécie de prelúdio às ¨Mitológicas¨.

Descartando preconceitos evolucionistas, tais como a noção de ¨pensamento pré-lógico¨ (de Lévy-Bruhl), Lévi-Strauss diz ser o pensamento mítico uma ¨forma intelectual de bricolagem¨, que recupera num processo contínuo os resíduos de eventos empíricos, e uma ¨ciência do concreto¨, tão estruturada, lógica e rigorosa quanto o pensamento científico moderno, e igualmente capaz de formular analogias e generalizações.

Dedicado à memória do filósofo Maurice Merleau-Ponty, se encerra porém com uma célebre ofensiva contra outro expoente do pensamento fenomenológico-existencial: Jean-Paul Sartre.

Na visão dialética da história na obra de Sartre, Lévi-Strauss vê uma outra forma de projeção eurocêntrica e um valioso documento etnográfico acerca da ¨mitologia de nosso tempo¨.

Mitológicas (1964-71) - Com base na análise de cerca de 800 mitos ameríndios e inspirado nos moldes da música -- que considera semelhantes aos do mito --, essa colossal tetralogia é composta por ¨O Cru e o Cozido¨, ¨Do Mel às Cinzas¨, ¨A Origem dos Modos à Mesa¨ e ¨O Homem Nu¨.

Seu objetivo é mostrar ¨de que modo categorias empíricas, como, por exemplo, as de cru e cozido, de fresco e de podre, de molhado e de queimado etc., definíveis com precisão pela mera observação etnográfica, (...) podem servir como ferramentas conceituais para isolar noções abstratas e encadeá-las em proposições¨.

Desse modo, seria possível chegar a níveis cada vez mais amplos de generalização e, em última instância, desbravar os fundamentos universais do espírito humano. O meio para isso, segundo o antropólogo, seria o rastreamento das múltiplas recombinações, permutações e oposições -- e não, como na teoria simbolista, significados ocultos de símbolos abstraídos do contexto -- por meio das quais os ¨mitos se pensam entre si¨.

Antropologia Estrutural 2 (1973) - Nesta nova coletânea, tem destaque o clássico ¨Raça e História¨ (1952) --libelo, escrito a pedido da Unesco, contra o racismo, no qual o antropólogo sintetiza sua visão da história mundial e sua defesa da diversidade cultural.

Cabe mencionar também ¨A Gesta de Asdiwal¨, estudo de um mito indígena da costa canadense do Pacífico; ¨O Campo da Antropologia¨, aula inaugural do autor no Collège de France, em 1960; e ¨Jean-Jacques Rousseau, fundador das Ciências do Homem¨ (1962).

Neste último, o filósofo genebrino é evocado como precursor da etnologia por ter formulado o preceito de que, se para estudar ¨os homens¨ é preciso olhar perto de si, para estudar ¨o homem¨ é preciso aprender a dirigir para longe o olhar e descobrir semelhanças depois de observar as diferenças.

Dez anos mais tarde, Lévi-Strauss lançaria um novo conjunto de artigos que, segundo suas próprias palavras, poderia ser considerado o terceiro volume da ¨Antropologia Estrutural¨, porém batizado de ¨O Olhar Distanciado¨.

A Via das Máscaras (1975) -Tomando como referência a arte dos índios da costa noroeste dos EUA, Lévi-Strauss retoma questões fundamentais da estética e da história da arte.

Ele argumenta que o grafismo, a plástica e a cor podem ser entendidos como instrumentos de que um povo, escola doutrinal ou período se utilizam para se distinguir dos seus vizinhos, rivais ou predecessores.

Minhas Palavras (1984) - Lições ministradas por Claude Lévi-Strauss entre 1959 e 1982 no Collège de France e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Foi nesta escola onde, disse, ¨minhas idéias sobre a mitologia ganharam forma¨, o que é testemunhado em especial pelo curso, no ano letivo de 1951-52, dedicado à ¨Visita das Almas¨, cujo resumo consta desta coletânea.

Por meio das aulas e conferências aqui publicadas -- que versam também sobre parentesco e organização social, entre outros temas --, o leitor pode entrar em contato, portanto, com os movimentos da reflexão lévi-straussiana ao longo do tempo e também com a gênese e esboço de algumas das principais obras do autor -- como ¨O Pensamento Selvagem¨ e ¨Mitológicas¨.

A Oleira Ciumenta (1985) - Nesta nova incursão pelo vasto território dos mitos ameríndios, Lévi-Strauss analisa, em suas analogias nos povos mais diversos, a figura da ceramista (oleira) e as relações desse ofício com o sentimento do ciúme.

No capítulo final, ¨´Totem e Tabu´ Versão Jivaro¨, o antropólogo francês retoma uma vez mais o diálogo do estruturalismo com a psicanálise. Ele combate, em Freud, a suposta afinidade descoberta entre crianças, neuróticos e primitivos, assim como o monopólio dado ao ¨código sexual¨ de decifração dos símbolos míticos e oníricos.

De Perto e de Longe (1988) - Esses diálogos com o jornalista Didier Eribon, juntamente com as entrevistas a Georges Charbonnier, em 1961, estão entre as mais acessíveis introduções a toda a complexidade de um dos maiores antropólogos de todos os tempos.

Lévi-Strauss comenta seu percurso, suas idéias e obras, confessa que gostaria de ter sido autor dramático e constrói um auto-retrato muito revelador.

Por exemplo, em passagens como a que se identifica subjetivamente com o ¨primitivismo¨ que lhe fornece boa parte de seus objetos de estudo: ¨Tenho a inteligência neolítica; não sou alguém que capitaliza, que faz frutificar seu conhecimento; sou antes alguém que se desloca a uma fronteira sempre instável¨.

História de Lince (1991) - Num esforço de ¨síntese de reflexões dispersas ao longo dos anos¨, o autor investiga as fontes filosóficas e éticas do dualismo ameríndio.

Estuda como as lendas da América resistem a fazer com que uma situação inicialmente dual seja reduzida a uma identidade perfeita, sustentando, antes, um dualismo dinâmico e em permanente desequilíbrio.

Nisso o antropólogo desvela uma atitude de ¨abertura ao outro¨ que pautou os nativos quando dos primeiros contatos com o branco colonizador, e que é uma conduta oposta à de nossa sociedade --voltada a reduzir o diferente a uma imagem especular de si mesma.

Olhar, Escutar, Ler (1993) - Num dos livros em que mais diretamente se dedica a questões relativas à arte -- que, não obstante, sempre teve grande importância em suas investigações etnológicas --, Lévi-Strauss evoca, como matéria-prima de análise, algumas de suas grandes experiências estéticas pessoais --do romance de Proust à música de Rameau e Wagner, passando pela pintura de Poussin.

Reflete sobre um soneto de Rimbaud à luz dos modernos estudos de poética de Roman Jakobson, além de investigar as variações e a possível estrutura comum aos três procedimentos estéticos básicos --olhar, escutar, ler.

Saudades do Brasil (1994) - Lévi-Strauss dizia ser o escopo da sua antropologia um ¨super-racionalismo¨ capaz de integrar os níveis do sensível e do inteligível.

Neste álbum fotográfico, que remonta às raízes de sua aventura antropológica, ele dá prova da extrema sensibilidade com que vivenciou e registrou as experiências em terras brasileiras durante os anos 1930.

Seja pelas imagens de uma São Paulo a caminho de se converter em metrópole industrial e financeira, seja pelas cenas da vida cotidiana de tribos do Centro-Oeste, o livro é testemunho precioso e elegíaco de uma época (pessoal e coletiva) soterrada pelo tempo e pelo processo histórico hegemônico. Em 1995, o autor lançaria um segundo livro do gênero, ¨Saudades de São Paulo¨.

  

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