Carmen 100 anos 08/02/2009
- Zuza Homem de Mello - O Estado de S.Paulo
Com exceção de duas músicas, o choro Tico-Tico no Fubá, conhecido há anos e tocado em outro estilo pelos pianistas de New Orleans, e o samba-exaltação Aquarela do Brasil, gravado à beça no exterior com o título de Brazil, tudo o que se sabia sobre a música brasileira no resto do mundo até a chegada da bossa nova resumia-se a dois nomes próprios: Carmen e Miranda. Afora isso, nada mais. De 1940 a 1962.
Carmen havia brilhado no Brasil como nenhuma outra cantora durante a década de 1930, a chamada Época de Ouro da música popular brasileira. A entrada em cena foi rápida e retumbante; seu terceiro disco - a marchinha que seria celebrizada como Taí - abriu as portas do sucesso para si e para a gravadora Victor, então no segundo ano de atividades no Brasil. Era inevitável que se tornasse a primeira estrela da companhia, uma celebridade no ambiente das cantoras que flertavam com um incipiente profissionalismo. Carmen não, era "profissa" antes mesmo de entrar em estúdio pela primeira vez.
Nos quase 10 anos seguintes o repertório de Carmen será uma divertida fotografia em preto-e-branco daquele Rio das confeitarias e das palhetas, um bocado diferente do que seria a capital 20 anos mais tarde, e mais ainda de 1960 em diante. Mas então em que medida o fon-fon das buzinas das baratinhas ou o dim-dim dos condutores de bonde, que servem de pano de fundo não audível nas suas gravações, podem despertar algo mais que mera curiosidade em quem vive no mundo de hoje? É algo semelhante ao que está presente nos imaginativos solos do cornetista Bix Beiderbecke com os Wolverines ou nas esplêndidas melodias de Mischa Spoliansky que nos remetem de per si e respectivamente à fascinante Chicago dos gângsteres nos anos 20 e à fervilhante Berlim dos permissivos cabarés entre as duas grandes guerras. É algo sutil que nos leva mais que simplesmente a reviver uma época, senão vivenciar uma quarta dimensão da história através do mais belo dos testemunhos, o da arte. E dela, a forma mais etérea, a música. É algo decorrente da singular percepção, provavelmente instintiva, de Carmen Miranda quando decidia o que gravar, quando cantava como gravou. É algo que só existia de fato nas suas performances de palco com balangandãs, turbantes, sandálias plataforma e tudo o mais, porém fortemente presente na imaginação de quem ouve seus discos.
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São eles, para nós bem mais que os filmes de Hollywood, a valiosa herança do capítulo da arte popular brasileira que reúne um recorde de 286 gravações em menos de 10 anos, originalmente em 78 rotações, cujos rótulos estampam, abaixo dos nomes dos autores de cada canção, o dessa intérprete que soube combinar sua voz com uma figura cênica ímpar, no nível de Charles Chaplin.
Devido à profusão de inusitados elementos visuais e aos trejeitos que personalizaram seus espetáculos em circos, auditórios de rádio, teatros e cassinos, bem como filmes em que atuava, Carmen era uma cantora fácil de ser caricaturada como fez, como exemplo, a vedete Gina LeFeu em Tio Samba, um musical dos anos 60 produzido no Teatro Record.
Mas a essência da Carmen veio mesmo à tona em tributos consideravelmente mais marcantes, quando Ney Matogrosso e quando Ná Ozzetti realizaram, em momentos diferentes, magistrais recriações de seu repertório baseadas no que se ouvia em seus discos, reveladores do estilo da cantora.
O "it" de Carmen é que ela tinha bossa. E tanta que, a partir do seu Taí para o Carnaval de 1930, o gênero marchinha começa de fato a existir nas canções dos três dias de folia, até então francamente dominadas pelo ritmo do samba. E assim, ditada pela bossa de Carmen, a marcha carnavalesca passou a ser um gênero fértil na música brasileira, representando por mais de 20 anos o quadro pitoresco e de fácil memorização de acontecimentos e de pensamentos vistos sob a ótica da pândega ou da crítica social.