Dada como morta, anistiada passou 16 anos na clandestinidade 23/08/2009
- Wilson Tosta - O Estado de S.Paulo
Em março de 1980, uma mulher procurou o advogado Luís Eduardo Greenhalgh em seu escritório em São Paulo e, ao ser recebida, deu-lhe um susto: era Victória Grabois, filha de Maurício Grabois, mulher de Gilberto Olímpio Maria e irmã de André Grabois - militantes do PCdoB desaparecidos na Guerrilha do Araguaia (1972-1975). A hoje pesquisadora começava a encerrar quase 16 anos de clandestinidade, condição de muitos brasileiros perseguidos pelo regime militar que se aproximava do seu fim.
No período, dada como morta por amigos do Rio, usara documentos com nome falso, com os quais viajara a Mato Grosso e à Europa, criara um filho, cursara universidade, tornara-se professora, alugara casas, comprara carro e fizera greves. Aconselhada pelo advogado a se "relegalizar", ainda teve de esperar, pois Greenhalgh estava ocupado tentando tirar da prisão um sindicalista, o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
"O Lula me deve esta: adiei minha volta à legalidade para ele sair da cadeia", diverte-se Victória, que, depois, entrou, por intermédio do advogado, com uma Ação de Justificativa que lhe permitiu retomar o nome verdadeiro. "Entreguei a casa em São Paulo, vendi o carro e voltei para o Rio. Na clandestinidade, usou documentos verdadeiros tirados com uma certidão em nome de Teresa Freitas, obtida por um militante do PCdoB no Rio Grande do Sul.
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A vida clandestina de Victória começou em 1º de abril de 1964, dia seguinte ao desencadeamento do golpe, quando, ainda solteira, ela e a família saíram da casa em que moravam, por causa de sua militância e ligações políticas. Esconderam-se em casas de parentes e amigos no Rio, até que se mudaram para São Paulo, onde a mãe, Alzira da Costa Reis, alugou uma casa. Pouco depois, em Porto Alegre, Victória conseguiu a certidão em nome de Teresa, sobrinha de um militante do partido. Com ela, pôde, como disse, "se legalizar, entre aspas". Tinha R.G e título eleitoral emitidos por órgãos oficiais, ainda que em nome de outra pessoa e com endereços catados no catálogo telefônico.
Àquela altura, Victória já fora incluída na primeira lista de estudantes expulsos pelos militares da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil - hoje, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Sua mãe e seu irmão também conseguiram papéis falsos. Mas foi com seus nomes verdadeiros que ela e o então namorado, Gilberto, foram para o interior paulista, onde se casaram. Depois, o casal foi para Guiratinga (MT). O objetivo era, com mais dois militantes, levantar um local para a guerrilha. Mas não foi atingido. "Desmobilizamos no fim de 1965", conta ela, que voltou com o marido a São Paulo. "Não era adequado, tinha muitas cidades próximas." Em 1966, nasceu seu filho, Igor Grabois, no Rio, com a ajuda de uma tia de Victoria, Maria Grabois, que registrou o menino.
Após 68, Gilberto foi para o Araguaia e André também - iam e voltavam. Victória, com os documentos em nome de de Teresa, começou a fazer cursos de idiomas. E tentava se adaptar à vida secreta, policiando-se para não se trair. "No começo, é muito difícil", diz ela, contando que a ajuda da família do pai e da mãe foi fundamental. "Tinha que introjetar, senão morreria."
GUERRILHA
Um dia, em 1972, o secretário-geral do PCdoB, João Amazonas, a procurou na casa do Jabaquara, onde vivia com o filho e a mãe, e contou que a guerrilha começara. Não sabia o que ocorrera a Maurício, Gilberto e André - ela só teria certeza da morte do pai e do marido em 1980, quando Greenhalgh lhe mostrou um relatório, embora então já soubesse que André morrera. Amazonas lhes disse que deveriam mudar de casa, o que conseguiu em dois dias, e arrumar uma fachada. Ela foi estudar num curso supletivo, para prestar vestibular para Letras, e entrou uma faculdade particular, cujo nome prefere preservar.
Ainda estudante, conseguiu emprego de aluna-mestre e foi fazendo provas para professor-substituto, que não tinha estabilidade. Ironicamente, trabalhava no governo Paulo Egydio Martins, alinhadíssimo à ditadura. E o salário dava para a manutenção da família: 19 mil cruzeiros em 1979, quando o aluguel da casa era 2.000. Chegou a fazer greves em 1978 e 1979, tendo sido uma vez encarregada pela diretora da escola em que trabalhava de percorrer turmas para explicar o movimento. E havia outros problemas: convenceu Igor, aos cinco anos, que passaria a se chamar Jorge, dizendo que, na escola em que passaria a estudar, era proibido ter nome estrangeiro. "Um dia, um menino perguntou para ele: ‘Como você se chama?’ E o Igor respondeu: ‘Na escola, me chamam de Jorge’". Aquilo me baqueou",conta.
As coisas ficaram mais complicadas com a chegada da adolescência do garoto, quando a casa da clandestina virou palco de festas de adolescente. Alzira passou a dar aulas particulares para meninos e meninas da vizinhança. "Eu saía para jantar com uma amiga de coração na mão. Pensava: Gente, se descobrirem, vão prender esse monte de crianças, que não têm nada a ver com isso."
Desde a Chacina da Lapa, nos anos 70, quando parte da cúpula do PCdoB foi morta e outra foi presa, Victória e sua mãe perderam o contato com o partido. Quando veio a anistia, em 1979, ela quis voltar para o Rio, mas Alzira insistiu que Amazonas lhes pedira para não se mudarem, porque, se voltasse, teria uma casa para ficar.
"Minha mãe era disciplinada, o partido vinha acima de tudo", relata. "Mas vimos que o Diógenes Arruda Câmara (dirigente do PC do B) voltou e não apareceu. O Amazonas voltou e não apareceu. Aí falei para minha mãe: "A gente tem que ir. Vou ficar a vida inteira me chamando Teresa, você, Maria, e o Igor, Jorge?"
Foi quando resolveu buscar ajuda jurídica. De volta ao Rio e à vida legal, ela dedicou-se a telefonar para amigos que não via havia anos - muitos achavam que morrera e se surpreendia. "Eu falava: Aqui é Victória. Mas era mais fácil falar Teresa que Victória", conta.