Padre Cícero, mil e uma faces de um mito da fé nacional 05/12/2009
- Jotabê Medeiros, de O Estado de S. Paulo
Vista da estátua do Padre Cícero visitada por milhares de pessoas em romaria à cidade de Juazeiro, no Ceará
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Padre Cícero (à dir.) e um colega no seminário: sempre rebelde
Dois milhões de romeiros chegam todo ano a Juazeiro, no Ceará, para prestar tributo a um homem que já foi descrito de mil maneiras: santo, reencarnação de Jesus Cristo, porta-voz das oligarquias, aliado de cangaceiros, ideólogo de políticas sociais, espertalhão que enriqueceu de modo ilícito, semeador de fanatismos, raposa que tirou proveito da ingenuidade popular, curandeiro das ervas.
Cícero Romão Batista (1844-1934), o Padre Cícero (ou Padim Ciço, para os populares), complexa personalidade que resume em sua história os fenômenos da fé exacerbada nos sertões brasileiros, é objeto de uma vigorosa obra literária: a biografia Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão (Cia. das Letras, 540 págs, R$ 49), do escritor Lira Neto. O livro, envolvente e detalhista, já entrou nas listas dos mais vendidos deste final de ano e seu ritmo chamou a atenção do cinema. A produtora brasileira RT/features comprou os direitos para a tela grande, e o diretor será Sérgio Machado (de Cidade Baixa). A obra chega em momento chave do processo de reabilitação histórico-eclesial do padre pelo Vaticano, conforme afirmou ao Estado o bispo italiano Fernando Panico, da Diocese do Crato.
"Quando estive com o papa Bento 16, agora em setembro de 2009, para a visita ad limina, ele próprio - que foi quem pediu a revisão dos fatos de Juazeiro quando ainda era o Cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação da Doutrina da Fé - prometeu solicitar que apressassem a conclusão desse caso", disse d. Fernando Panico.
Cícero foi alvo de um tumultuado processo eclesiástico, que resultou em sua suspensão das ordens sacerdotais e, mais tarde, de um decreto de excomunhão do Santo Ofício, em Roma. À época, ele foi acusado de desobediência e de insubordinação pela alta cúpula do clero. Morreu proscrito pela Igreja, aos 90 anos. Para Lira Neto, autor da biografia, a reabilitação canônica do Padre Cícero precisa ser compreendida dentro do contexto da "guerra santa" entre católicos e neopentecostais. "A Igreja, tardiamente, percebeu que o fenômeno Padre Cícero é forte demais para ser combatido ou esquecido."
O historiador americano Ralph della Cava (autor de Milagre em Joaseiro, primeira obra fundamental sobre o religioso, publicada nos anos 70) diz que, ao contrário de Canudos, que teve a sorte de ter um grande historiador debruçado sobre o tema (José Calasans), sempre houve pouca produção acadêmica e literária sobre o Padre Cícero. Para Lira Neto, essa situação começou a mudar há duas décadas.
"O próprio livro de Ralph abriu caminho para uma vasta produção subsequente, o que demonstra que não há qualquer preconceito intelectual quanto ao personagem. Longe disso. O problema é que essa bibliografia ficou restrita, de modo geral, ao interior dos muros das universidades, sem conseguir provocar um diálogo efetivo com um público mais amplo."
Segundo Lira Neto, seu livro busca renovar esse interesse em um outro front, o do leitor comum, mas se vale para isso de uma investigação minuciosa e do mergulho em valiosas fontes primárias. O livro tem como sustentáculo o acervo de 900 cartas trocadas entre os protagonistas da história, oriundos do Departamento Histórico da Diocese do Crato, e os documentos sob a guarda do Arquivo Secreto do Vaticano. Manuscritos produzidos sob a emoção dos acontecimentos que culminaram na expulsão de Cícero da Igreja Católica, a história tem "todos os ingredientes típicos de um autêntico thriller", segundo o autor: intrigas eclesiásticas, traições, mistérios, assassinatos nunca esclarecidos.
Lira discorda que o culto popular à figura do padre milagreiro se integre à ideia da resignação do sertanejo face ao seu destino. "Eu não afirmaria isso de forma categórica", diz. "Em Cícero, conviviam, de um lado, a fé ritualizada, a rigidez clerical do seminário, e, de outro, o universo mental típico do homem sertanejo, uma visão de mundo sincrética, lastreada no pensamento mágico e no maravilhoso. Uma vez banido, só então fez da política uma nova espécie de sacerdócio."
A partir daí, Cícero torna-se um líder político igualmente polêmico e controverso. Chega a defender militarmente a cidade de Juazeiro, em 1913, e repelir uma força militar de mil homens. "Os que querem ver Cícero como um místico primitivo e caricato cometem uma grave falha histórica. Ele era habilidoso, ladino, sagaz. Por isso sobreviveu a todos os seus inimigos, tanto na política como no clero."
Entrevista com o escritor Lira Neto, autor da biografia do Padim Ciço:
Quem era a beata Maria Araújo?
- O pivô da expulsão de Padre Cícero do sacerdócio foi a beata Maria de Araújo. No dia 1º de março de 1889, Cícero distribuía a comunhão na igreja quando uma das beatas, ao receber a hóstia, revirou os olhos e pareceu entrar em transe. Em sua boca a hóstia sangrava. Tentava conter o sangue, mas este lhe descia pelo braço. Em agosto, Maria de Araújo contaria ter se encontrado com o próprio Cristo. Juazeiro virou uma nova Jerusalém. Os médicos rechaçaram a hipótese de fraude. Não havia lesão da laringe ou pulmão e, mesmo que houvesse, isso teria debilitado Maria. A insistência na tese do milagre levou Cícero ao confronto. Mas Maria vertia sangue frente ao próprio comissário do bispo. "Mulher, negra e analfabeta. Como o sangue de Cristo poderia se materializar numa criatura dessas?, perguntava-se a Igreja", assinalou a escritora e ensaísta Maria do Carmo Pagan Forti.
Sendo os milagres tão antigos, como explicar a persistência da fé?
- Quem chega a Juazeiro do Norte, pela primeira vez, talvez perceba ali apenas a notória exploração política, econômica e religiosa do povo sertanejo em nome de Cícero. Essa exploração existe e é um fato inegável.
Mas um olhar mais atento também pode detectar outro fenômeno, tão eloquente quanto esse. As romarias e a devoção ao padre que viveu e morreu como um rebelde proscrito do clero se inscrevem em uma lógica que foge à assepsia do rito oficial da Igreja Católica.
Quando vista em sua perspectiva histórica, é uma fé insubmissa, indomável, transgressiva, que hoje a cúpula do clero tenta a todo custo absorver, sob pena de deixar à margem do ritual uma verdadeira legião de fiéis, disputados pelas igrejas neopentecostais.
Assiste-se hoje, no sertão, a uma verdadeira guerra de poder, quase uma "guerra santa", na qual padres e pastores evangélicos medem forças para atrair avidamente os romeiros e peregrinos.
Havia muitos padres amancebados no Ceará na época. O Padre Cícero nunca teve uma mulher?
- Os muitos inimigos de Cícero já o acusaram de inúmeras coisas, mas não de ter quebrado os votos de castidade ou o celibato clerical. No livro, mostro uma charge publicada à época por um jornal satírico pernambucano, Lanterna Mágica, em que se sugere que Cícero mantinha relações com as beatas. Mesmo os mais ferrenhos opositores foram obrigados a reconhecer então que a charge havia errado o alvo. Cícero permaneceu fiel ao celibato.