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TÁ LIGADO?
País das contradições
05/11/2006
¨A melhor reforma tributária
é não fazer nada por 10 anos¨O Brasil é um país de contradições, em que os três Poderes quase sempre não cumprem suas atribuições. Em matéria tributária, pelo menos, é assim que funciona: “O Executivo busca sempre obter leis que lhe permitam arrecadar mais. O Legislativo quase sempre é subserviente ao Executivo. E o Judiciário funciona como freio, mas nem sempre é eficaz”. A opinião é do advogado tributarista Hugo de Brito Machado, um dos autores mais citados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Para Brito machado, o Legislativo usa e abusa do poder de fazer leis. Deixa muitas vezes a Constituição de lado ou a manipula a seu bel prazer. O Executivo, que deveria se submeter a essas leis, é campeão em desrespeitá-las. Ao Judiciário, então, fica o papel de dizer qual norma é constitucional e fazer com que o Executivo cumpra estas regras. “Na maioria dos julgados, porém, o Judiciário favorece o governo em matéria tributária. Aceita o argumento de que o governo não pode perder receita”. O resultado disso é que o Executivo acaba sendo executado, as leis criadas pelo Legislativo são anuladas e o Judiciário se torna cada vez mais ativo na formação da política tributária do país.
Nesse jogo de interesses, a segurança jurídica fica abalada. As leis mudam sempre, a jurisprudência, muitas vezes, também, e a já complexa legislação tributária se torna cada vez mais confusa. Nesse cenário, Brito Machado acredita que o melhor a se fazer em matéria tributária é não fazer nada. Ou seja, nada de reforma tributária por 10 anos. “Durante esse tempo, uma comissão de financistas e tributaristas poderia estudar uma reforma para, no final desse prazo, ser discutida e votada.”
Leia a entrevista que Hugo de Brito Machado concedeu por e-mail para a Revista Consultor Jurídico.
É possível fazer uma reforma tributária?
Sempre é possível reformar qualquer coisa.
Qual é a reforma desejável e a possível?
Desejável para quem? Para o governo, é desejável aumentar os tributos. Assim têm sido as reformas tributárias em nosso país. Possível é a que resulta da conciliação dos interesses em conflitos, especialmente interesses do governo federal, dos governadores e dos prefeitos. Como todas as reformas feitas até hoje implicaram aumento de tributos e agravamento das complexidades e da burocracia no sistema tributário, a melhor reforma consiste em proibir toda e qualquer mudança de toda e qualquer norma durante cinco ou dez anos. Durante esse tempo, uma comissão de financistas e tributaristas poderia estudar uma reforma para, no final desse prazo, ser discutida e votada.
Como o senhor vê a qualidade e quantidade das leis tributárias editadas pelo Congresso Nacional?
Quanto à qualidade, as leis tributárias deixam muito a desejar. O legislador não cumpre as normas da Lei Complementar 95/98 [que dispõe sobre as regras para elaboração de leis]. A falta de sistematização e o uso de terminologia inadequada são dois graves defeitos de nossa legislação tributária. A quantidade de leis também é lamentável. É indiscutível o exagero na produção normativa em matéria tributária. O Executivo busca sempre obter leis que lhe permitam arrecadar mais. O Legislativo quase sempre é subserviente ao Executivo. E o Judiciário funciona como freio, mas nem sempre eficaz. Aliás, pode-se dizer que, na maioria dos julgados, o Judiciário favorece o governo em matéria tributária. Aceita o argumento de que o governo não pode perder receita. Mas não há dúvida de que, sem o Judiciário, seria muito pior.
Cabe ao Supremo, então, um papel ativo na política tributária do país?
A administração pública (o Poder Executivo) insiste na criação e na cobrança de tributos contrariando a Constituição. Por isto é que o Supremo vive abarrotado de questões tributárias.
Nesse cenário, como fica a segurança jurídica?
Muito abalada. A jurisprudência, especialmente em razão da demora nos julgamentos e da rapidez com que as leis são alteradas, não tem o chamado efeito didático. Quando uma questão é resolvida definitivamente, a interpretação dada à norma questionada já não tem a utilidade que deveria ter, pois a lei vigente em muitos casos já é outra.
O senhor é autor da tese de que o contribuinte não pode ser processado por sonegação fiscal antes do fim do procedimento administrativo. Que mudança essa tese provocou na relação contribuinte-fisco?
Com o acolhimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da tese segundo a qual não se pode admitir ação penal por crime contra a ordem tributária antes da decisão definitiva no processo administrativo, tem-se pelo menos a garantia de que o contribuinte não será processado criminalmente antes de ser apreciada a defesa que tiver apresentado à autoridade administrativa. Evita-se que o contribuinte seja processado por crime que não cometeu. Não são raros os autos de infração com exigência de tributo indevido, ou maior do que o devido. Em alguns, a própria autoridade administrativa (os conselhos de contribuintes, por exemplo) reconhecem que a exigência é indevida, ou que o valor devido é menor. Assim, fica assegurado ao contribuinte o direito de pagar somente o devido e, assim, extinguir a punibilidade do crime que eventualmente tenha cometido.
Apesar de essa tese estar praticamente consolidada nos tribunais, o Ministério Público insiste em denunciar contribuintes por sonegação sem que o processo administrativo tenha chegado ao fim. Como isso afeta a segurança jurídica?
Isto afeta significativamente a segurança jurídica porque dá oportunidade para o juízo penal condenar por crime tributário quem na verdade não praticou esse crime. Dá oportunidade a decisões divergentes: uma condenando pelo crime e outra, no juízo cível, dizendo que o contribuinte não é devedor de tributo. Aos poucos, porém, o Judiciário vai tornando pacífico o entendimento segundo o qual é necessário o esgotamento da via administrativa.
A ação penal pode ser usada como meio de coação para a cobrança tributária?
Com certeza, não. Na prática, porém, em muitos casos, ela é usada para coagir o contribuinte.
Há lugar no Direito Tributário para a transação?
Sim, o Código Tributário Nacional prevê isso expressamente.
Qual a sua posição a respeito do lançamento de tributo por homologação?
O lançamento por homologação é uma criação inteligente do mestre Rubens Gomes de Sousa, que o introduziu em nosso Código Tributário Nacional, do qual foi o artífice maior. Para alguns tributaristas, pode haver tributo sem lançamento. Aliás, a maioria dos impostos atualmente existentes em nosso sistema seriam tributos sem lançamento. Não posso concordar com essa tese. Na verdade, não existe tributo sem lançamento. O lançamento sempre existe, ainda que apenas por ficção jurídica, como é o caso do tributo cujo lançamento resulta de homologação tácita, nos termos do artigo 150, parágrafo 4º, do Código Tributário Nacional.
Há lugar para os direitos humanos no Direito Tributário?
Sim. Que o diga o professor Ricardo Lobo Torres, do Rio de Janeiro, que tem sustentado isso em excelentes estudos já publicados e em palestras que faz nos seminários e congressos.
O contribuinte deveria ser visto como cliente do fisco?
O cliente assim como o fornecedor podem ser escolhidos. A relação entre eles é voluntária. Situa-se no momento da liberdade. A relação tributária é impositiva. Ninguém é contribuinte porque quer. Em contextos bem específicos, pode ser colocada a relação tributária como relação de consumo, se daí decorrer benefícios para o contribuinte. Como regra geral, todavia, penso que isso não é possível.
Qual a opinião do senhor sobre estas questões pontuais?
Crédito prêmio do IPI — Acho que subiste e que é um bom incentivo às exportações;
Local de pagamento do ISS — Como regra, deve ser o local em que está o estabelecimento prestador. Excepcionalmente, pode ser o local da prestação do serviço, conforme, aliás, ficou bem esclarecido na Lei Complementar 116;
Local de pagamento do ICMS — Deve ser no destino e não na origem do produto;
Alíquota zero de insumos — Não gera direito ao crédito do IPI;
Cofins para sociedades de profissionais liberais — Subsiste a isenção, pois uma lei ordinária não pode revogar uma lei complementar. Por outro lado, a Constituição Federal exige que as isenções sejam tratadas em leis específicas (CF/88, art. 150, § 6º) e isto não foi obedecido. Assim, seja por uma, seja pela outra razão, certo é que a norma que se propôs a abolir a isenção da Cofins para as sociedades de profissionais é inconstitucional.
ICMS na base de cálculo da Cofins — Nosso sistema tributário contempla várias situações em que o tributo incide sobre outro tributo, o que é realmente um verdadeiro absurdo. Mesmo assim, não acredito que o ICMS venha a ser excluído da base de cálculo da Cofins, embora isto devesse ocorrer.
O senhor defende a limitação de incentivos fiscais. Por quê?
O incentivo fiscal, em princípio, é válido. Mas, infelizmente, é objeto de abusos e distorções. É um instrumento que exige muitas cautelas.
Por que a súmula vinculante ainda não foi usada?
Parece que é porque o principal atingido será a administração pública (o fisco) que é quem mais descumpre decisões judiciais. Aliás, por isto mesmo, temos em nosso sistema jurídico a execução contra a Fazenda Pública. O processo de execução é um instrumento destinado a compelir o vencido a cumprir a decisão judicial. Em um Estado de Direito, é um contra-senso pensar em execução contra a Fazenda Pública. O Estado de Direito caracteriza-se precisamente porque se submete ao Direito. Não se explica, portanto, a necessidade de um instrumento para obrigar o Estado a cumprir as decisões judiciais.
Embora seja proibido, o governo edita Medida Provisória sobre matéria tributária. O que o senhor pensa disso?
A MP já é, por si mesma, um instrumento de arbítrio, que afeta sensivelmente o princípio da separação dos poderes. Em matéria tributária, não deveria ser possível o seu uso. No caso do Refis 3, tem-se um exemplo do inconveniente. O governo já não tem nenhum interesse na aprovação da MP. Não interessa mais à Fazenda.
O senhor defende a responsabilização do agente público por danos causados ao contribuinte. Por quê?
A única forma de conter as práticas arbitrárias em nosso país é a responsabilização pessoal do agente público pelos danos ao cidadão. Não só ao contribuinte, mas aos cidadãos em geral. Se o contribuinte começar a cobrar judicialmente do agente público indenização pelos danos que sofre em decorrência de práticas arbitrárias, com certeza as práticas arbitrárias ficarão reduzidas a bem poucos casos. A indenização tem duas finalidades: reintegrar o patrimônio lesado e castigar aquele que cometeu a ilegalidade. Ocorre que a indenização cobrada da entidade pública (União, estado ou município), embora atenda à primeira dessas duas finalidades, não atende à segunda. O valor correspondente sai dos cofres públicos. Da comunidade, portanto. E o agente público continua, por isso mesmo, agindo de modo irresponsável, pois nada sofre em decorrência da cobrança da indenização. Se a ação de cobrança da indenização for dirigida diretamente ao agente público, por menor que seja o valor da indenização, o efeito didático, educativo, da condenação fará com que o agente público pense duas vezes antes de praticar uma ilegalidade contra o cidadão.
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Aline Pinheiro - Revista Consultor Jurídico
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