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Prisão para depositário infiel pode ser derrubada
23/11/2006



Muito mais do que discutir se é possível prender o devedor em alienação fiduciária – mudança que já representa um marco na doutrina do Direito, o Supremo Tribunal Federal sinalizou que pode também declarar a impossibilidade da prisão do depositário infiel. Assim, a prisão civil ficaria limitada apenas ao inadimplente de pensão alimentícia.

Hoje, as duas únicas hipóteses de prisão civil permitidas pela Constituição Federal são para o devedor de pensão alimentícia e o depositário infiel. Em 1969, o Decreto-Lei 911 equiparou o devedor em alienação fiduciária ao depositário infiel, abrindo uma nova possibilidade de prisão civil. O conceito foi defendido pelo ministro aposentado do Supremo, Moreira Alves.

Na quarta-feira (23/11), o STF começou a reexaminar a sua própria jurisprudência e a caminhar no sentido oposto. Oito ministros já votaram – todos pela inconstitucionalidade da prisão para o devedor em alienação fiduciária. O ministro Celso de Mello interrompeu o julgamento. No seu pedido de vista, explicou que pretende refletir melhor sobre o assunto, uma vez que veio à tona discussão mais ampla sobre a possibilidade de prisão para o depositário infiel.

Hierarquia em questão

A discussão que se trava no Supremo é referente à hierarquia dos acordos internacionais. O Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o chamado Pacto de San José da Costa Rica, de 1969. O artigo 7º desse acordo estabelece: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

O tratado conflita com a Constituição brasileira que permite a prisão civil também em uma segunda hipótese, a do devedor infiel. Há, portanto, um choque entre as duas normas. Resta ao Supremo decidir qual deve prevalecer.

Para o ministro Gilmar Mendes, a corrente majoritária considera os tratados sobre direitos humanos infraconstitucionais, mas supralegais. Em outras palavras, os acordos internacionais seriam hierarquicamente inferiores à Constituição, mas superiores à legislação infraconstitucional.

O ministro reforça a sua tese com base no parágrafo 3º, do artigo 5º, inserido pela Emenda Constitucional 45. O dispositivo diz: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Corrobora essa tese também, de acordo com a visão do ministro, o fenômeno da globalização, que provocou “a abertura cada vez maior do Estado a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos”.

Admitida essa tese, a possibilidade de prisão para o depositário infiel cairia num vazio. O Pacto de San José da Costa Rica não admite prisão civil nestes casos. Ele não teria força para revogar a Constituição, mas teria poder suficiente para revogar a artigo 652 do novo Código Civil, que regulamenta a prisão. Sem regulamentação, a prisão não poderia ser admitida, mas se transformaria em previsão constitucional morta.

A discussão ainda não teve fim. Por enquanto, a decisão do STF deve valer apenas para declarar inconstitucional a equiparação entre devedor em alienação fiduciária e o depositário infiel e, conseqüentemente, a terceira hipótese de prisão civil. Ainda faltam os votos de três ministros: Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Eros Grau. Se não houver nenhuma reviravolta, o Supremo derrubará um entendimento de anos. No mais, também abrirá um precedente para que a prisão do depositário infiel seja questionada.

Leia o voto do ministro Gilmar Mendes

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 466.343-1 SÃO PAULO

RELATOR: MINISTRO CEZAR PELUSO

RECORRENTE(S): BANCO BRADESCO S/A

ADVOGADO(A/S): VERA LÚCIA B. DE ALBUQUERQUE E

RECORRIDO(A/S): LUCIANO CARDOSO SANTOS

VOTO-VOGAL

O EXMO. SR. MINISTRO GILMAR MENDES: O recurso extraordinário foi interposto pelo Banco Bradesco S.A., com fundamento no art. 102, III, “a”, da Constituição, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, negando provimento ao recurso de apelação n° 791031-0/7, consignou entendimento no sentido da inconstitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciante em contrato de alienação fiduciária em garantia, em face do que dispõe o art. 5º, inciso LXVII, da Constituição.

Após o voto do Ministro Cezar Peluso, negando provimento ao recurso, passo a analisar o tema.

I – Prisão civil do depositário infiel em face dos tratados internacionais de direitos humanos

Se não existem maiores controvérsias sobre a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor de alimentos, assim não ocorre em relação à prisão do depositário infiel. As legislações mais avançadas em matéria de direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente.

O art. 7o (n° 7), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe desta forma:

“Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”

Com a ratificação pelo Brasil desta convenção, assim como do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[1], sem qualquer reserva, ambos no ano de 1992, iniciou-se um amplo debate sobre a possibilidade de revogação, por tais diplomas internacionais, da parte final do inciso LXVII do art. 5o da Constituição brasileira de 1988, especificamente, da expressão “depositário infiel”, e, por conseqüência, de toda a legislação infraconstitucional que nele possui fundamento direto ou indireto.

Dispensada qualquer análise pormenorizada da irreconciliável polêmica entre as teorias monista (Kelsen)[2] e dualista (Triepel)[3] sobre a relação entre o Direito Internacional e o Direito Interno dos Estados — a qual, pelo menos no tocante ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, tem-se tornado ociosa e supérflua –, é certo que qualquer discussão nesse âmbito pressupõe o exame da relação hierárquico-normativa entre os tratados internacionais e a Constituição.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, surgiram diversas interpretações que consagraram um tratamento diferenciado aos tratados relativos a direitos humanos, em razão do disposto no § 2o do art. 5o, o qual afirma que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Essa disposição constitucional deu ensejo a uma instigante discussão doutrinária e jurisprudencial – também observada no direito comparado[4] – sobre o status normativo dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, a qual pode ser sistematizada em quatro correntes principais, a saber:

a) a vertente que reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos[5];

b) o posicionamento que atribui caráter constitucional a esses diplomas internacionais[6];

c) a tendência que reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional[7];

d) por fim, a interpretação que atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos[8].

A primeira vertente professa que os tratados de direitos humanos possuiriam status supraconstitucional. No direito comparado, Bidart Campos defende essa tese em trechos dignos de nota:

“Si para nuestro tema atendemos al derecho internacional de los derechos humanos (tratados, pactos, convenciones, etc., con un plexo global, o con normativa sobre un fragmento o parcialidad) decimos que en tal supuesto el derecho internacional contractual está por encima de la Constitución. Si lo que queremos es optimizar los derechos humanos, y si conciliarlo con tal propósito interpretamos que las vertientes del constitucionalismo moderno y del social se han enrolado – cada una en su situación histórica — en líneas de derecho interno inspiradas en un ideal análogo, que ahora se ve acompañado internacionalmente, nada tenemos que objetar (de lege ferenda) a la ubicación prioritaria del derecho internacional de los derechos humanos respecto de la Constitución. Es cosa que cada Estado ha de decir por sí, pero si esa decisión conduce a erigir a los tratados sobre derechos humanos en instancia prelatoria respecto de la Constitución, el principio de su supremacía — aun debilitado – no queda escarnecido en su télesis, porque es sabido que desde que lo plasmó el constitucionalismo clásico se ha enderezado — en común con todo el plexo de derechos y garantías — a resguardar a la persona humana en su convivencia política.”[9]

Entre nós, Celso de Albuquerque Mello[10] é um exemplar defensor da preponderância dos tratados internacionais de direitos humanos em relação às normas constitucionais, que não teriam, no seu entender, poderes revogatórios em relação às normas internacionais. Em outros termos, nem mesmo emenda constitucional teria o condão de suprimir a normativa internacional subscrita pelo Estado em tema de direitos humanos.

É de ser considerada, no entanto, a dificuldade de adequação dessa tese à realidade de Estados que, como o Brasil, estão fundados em sistemas regidos pelo princípio da supremacia formal e material da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico. Entendimento diverso anularia a própria possibilidade do controle da constitucionalidade desses diplomas internacionais.

Como deixou enfatizado o Supremo Tribunal Federal ao analisar o problema,“assim como não o afirma em relação às leis, a Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição (...) e aquele que, em conseqüência, explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, art. 102, III, b)[11].

Os poderes públicos brasileiros não estão menos submetidos à Constituição quando atuam nas relações internacionais em exercício do treaty-making power. Os tratados e convenções devem ser celebrados em consonância não só com o procedimento formal descrito na Constituição[12], mas com respeito ao seu conteúdo material, especialmente em tema de direitos e garantias fundamentais.

O argumento de que existe uma confluência de valores supremos protegidos nos âmbitos interno e internacional em matéria de direitos humanos não resolve o problema. A sempre possível ampliação inadequada dos sentidos possíveis da expressão “direitos humanos” poderia abrir uma via perigosa para uma produção normativa alheia ao controle de sua compatibilidade com a ordem constitucional interna. O risco de normatizações camufladas seria permanente.

A equiparação entre tratado e Constituição, portanto, esbarraria já na própria competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal para exercer o controle da regularidade formal e do conteúdo material desses diplomas internacionais em face da ordem constitucional nacional.

Ressalte-se, porém, que, na medida em que esse tipo de controle possa ser exercido, não se podem olvidar as possíveis repercussões de uma declaração de inconstitucionalidade no âmbito do Direito Internacional.

A experiência de diversos ordenamentos jurídicos, es­pecialmente os europeus, demonstra que as Cortes Constitucionais costumam ser bastante cautelosas quanto à questão da apreciação da constitucionalidade de tratados inter­nacionais. Assim, mesmo em momentos delicados — como os famosos casos Maastricht na Alemanha[13] e na Espanha[14] — os Tribunais evitam declarar a inconstitucionalidade de atos normativos internacionais.

Como afirmou o Tribunal Constitucional da Espanha no caso Maastricht:

“Aunque aquella supremacía quede en todo caso asegurada por la posibilidad de impugnar (arts. 27.2 c, 31 y 32.1 LOTC) o cuestionar (art. 35 LOTC) la constitucionalidad de los tratados una vez que formen parte del ordenamiento interno, es evidente la perturbación que, para la política exterior y las relaciones internacionales del Estado, implicaría la eventual declaración de inconstitucionalidad de una norma pactada.”

É nesse contexto que se impõe a necessidade de utilização de uma espécie de controle prévio, o qual poderia impedir ou desaconselhar a ratificação do tratado de maneira a oferecer ao Poder Executivo possibilidades de renegociação ou aceitação com reservas.

Essa idéia, apesar de todos os óbices do sistema brasileiro, já apresenta os elementos suficientes para a sua exeqüibilidade. Uma vez que o Decreto Legislativo que aprova o instrumento internacional é passível de impugnação pela via da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), ou ainda, da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), esse controle de caráter preventivo é possível no Brasil.

Assim, em face de todos os inconvenientes resultantes da eventual supremacia dos tratados na ordem constitucional, há quem defenda o segundo posicionamento, o qual sustenta que os tratados de direitos humanos possuiriam estatura constitucional.

Essa tese entende o § 2o do art. 5o da Constituição como uma cláusula aberta de recepção de outros direitos enunciados em tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil. Ao possibilitar a incorporação de novos direitos por meio de tratados, a Constituição estaria a atribuir a esses diplomas internacionais a hierarquia de norma constitucional. E o § 1o do art. 5o asseguraria a tais normas a aplicabilidade imediata nos planos nacional e internacional, a partir do ato de ratificação, dispensando qualquer intermediação legislativa.

...

Aline Pinheiro - Revista Consultor Jurídico


  

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