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TEMA LIVRE : João Vieira
Inveja: sentimento-mor de nossa gente
17/11/2007
Pela força de sua verdade, a afirmação acima deve circular e é o que faço pela disponibilização deste espaço. A tese me veio em formato de crônica, publicada em “O Globo” e também no globoonline.com, em 24/l0/07. Trata-se de mais uma produção (feliz) de Roberto da Matta, renomado antropólogo, com o provocativo título: “Você tem inveja?” Segue-se a transcrição:
¨A inveja é um sentimento básico no Brasil. Está para nascer um brasileiro sem veja. A coisa é tão forte que falamos em ¨ter¨ em vez de ¨sentir¨ inveja. Outros seres humanos e povos sentem inveja (um sentimento entre outros), mas nós somos por ela possuídos. Tomados pela conjunção perversa e humana de ódio e desgosto, promovidos justamente pelo sucesso alheio. Nosso problema é o sujeito do lado rico e famoso, que esbanja reformando a casa, comprando automóveis importados e dando ¨aquelas festas de tremendo mau gosto!¨ Ou é o sujeito brilhante que estamos convencidos ¨tira¨ (rouba, apaga, represa, impede) a nossa chance de fulgurar naquela região além do céu, pois, residindo no nirvana social dos poderosos (mesmo quando são cínicos e fracos), dos ricos (mesmo quando pobres e sofredores), dos belos (mesmo quando são feios), dos famosos (mesmo quando são frutos promocionais de revistas e jornais), e dos elegantes (mesmo quando são cafonas), estariam acima de todas as circunstâncias.
Estou seguro de que não é o patriotismo, mas a inveja, o sentimento básico de nossa vida coletiva. Para começar a gostar do Brasil, tínhamos que invejar a França, a Inglaterra, a Rússia, a Alemanha, a Itália e os Estados Unidos. Era, sem dúvida, a inveja que fazia torcer pela queda do Brasil no tal abismo de onde ele sairia melhor do que todo mundo. Antes do sexo, o brasileiro tem inveja. Ela antecede a sensualidade e o erotismo, sendo básica na formação de nossa identidade pessoal. Você sabe quem é, leitor, pela inveja que sente todas as vezes que encontra o tal ¨alguém¨ que, pela relação invejosa, faz você se sentir um bosta: um ¨ninguém¨.
Como as nuvens em volta das montanhas, a inveja se adensa em torno de quem é visto como importante, de modo que ser invejado é equivalente a ¨ter poder¨, ¨charme¨, ¨prestígio¨ e ¨riqueza¨. Dizem que a inveja é perigosa, mas o fato concreto é que não há brasileiro que não goste de ser invejado por alguma coisa. Pelo salário, pelo poder, pela beleza, pelo sucesso, pela inteligência e até mesmo pelas sacanagens, injustiças, calúnias e descalabros que comete. Num seminário recente sobre ¨Ética e corrupção¨, eu disse que é justamente a vontade de ser invejado que descobre os corruptos. Pois diferentemente dos ladrões de outros países, que roubam e somem no mundo, os nossos são forçados pela ¨lei relacional da inveja¨ a retornar ao lugar natal para mostrar aos seus parentes, amigos e, acima de tudo, inimigos, como estão ricos e, nisso são denunciados, presos, soltos e finalmente, colocados no panteão cada vez mais extenso dos canalhas nacionais. Dos infames que comprovam como a inveja e o desejo de ser invejado são o motor da vida brasileira.
A minha tese é a de que até a canalhice é invejada no Brasil. Richard Money-grand, o grande brasilianista, escreveu no seu diário filosófico, ¨Voyage Into Brasil¨, que: ¨Para os brasileiros, um dia sem inveja é um dia sem luz. A inveja confirma a idéia nacional do sucesso para poucos, como antes confirmava o berço e o sangue para a aristocracia e a superioridade social para os funcionários públicos e senhores de engenho. Todos a condenam, mas ninguém pode passar sem ela¨.
A inveja, digo eu, é o sinal mais forte de um sistema fechado, onde a autonomia individual é fraca e todos vivem se balizando mutuamente. O controle por intriga, boato, fofoca, fuxico e mexerico é a prova desse incessante comparar de condutas cujo objetivo não é igualar, mas hierarquizar, distinguir, pôr em gradação. O horror à competição, ao bom-senso, à transparência e à mobilidade é outro lado dessa cultura onde ter sucesso é uma ilegitimidade, um descalabro e um delito.
O êxito demarca, eis o problema, um escapar da rede que liga todos com todos. Essa indesejável individualização tem mais legitimidade quando vem de quem já está estabelecido. Daí ser imperdoável que Fulano ¨aquela figurinha¨ o faça, destacando-se pelo disco, novela, livro ou empreendimento desse mundo onde todos são pobres e miseráveis por definição e por culpa do ¨social¨. O pecado mortal das sociedades relacionais é justamente essa individualização que separa o sujeito de uma rede hierárquica. Rede que nos persegue neste e no outro mundo.
Como, então, não sentir inveja do sucesso alheio, se estamos convencidos de que o êxito é um ato de traição a um pertencer coletivo conformado e obediente? Como não sentir inveja se o exitoso é aquele que se recusa a ser o bom cabrito que não chama a atenção e passa a ser o mais vistoso esse símbolo de egoísmo e ambição? Ademais, como não ter inveja se o sucesso é um sinal de pilhagem de um bem coletivo? Essa coletividade que, entra ano, sai ano, continua a ser percebida como mesquinha, subdesenvolvida, pobre e atrasada? Como um bolo pequeno e que jamais cresce, destinado a ser comido somente pelos que estão sentados à mesa?¨, conclui Roberto da Matta.
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João Vieira é sociólogo e escreve quando bem entende no Saite Bão. E-mail: joaovieira01@pop.com.br
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