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TEMA LIVRE : Xico Graziano
Passaporte bovino
16/12/2008
Bezerros com passaporte. A novidade pertence ao sistema de rastreabilidade bovina de Mato Grosso do Sul, proposta conjunta do governo estadual com o sindicato dos pecuaristas. Um trabalho exemplar.
Intitulado Pass-Carne/MS, Passaporte da Carne Bovina de Mato Grosso do Sul, seu teste preliminar ocorre agora, em dezembro, nos municípios de Campo Grande, Rochedo, Corguinho, Aquidauana e Miranda. Para aderir ao sistema o produtor rural deverá cumprir certas exigências, a começar da ajuda de um médico veterinário, responsável técnico pela propriedade. O manejo sanitário e nutricional do rebanho segue rígidas normas, incluindo a existência de um pasto quarentenário, onde os animais recém-adquiridos permanecem um tempo para observação clínica, antes de adentrar o rebanho da fazenda. Uma receita de fôlego.
Mais ainda. Há que existir local adequado para a destruição dos cadáveres de animais porventura mortos, evento que normalmente acontece por doenças, mordida de cobra ou ingestão de ervas venenosas. Nas fazendas por aí afora, carcaças de animais normalmente fedem a céu aberto, decompondo-se com a ajuda de urubus e larvas, originando focos de botulismo, terrível bactéria assassina. Um relaxo antigo, modernamente insuportável.
O novo sistema exige que todos os bezerros, antes da desmama, recebam na face direita uma marca, a fogo, com três números ou letras. Essa ¨marca de origem¨, característica de cada região do Estado, identificará a rês até o fim da vida, incluindo a inscrição estadual do produtor. Uma verdadeira carteira de identidade bovina.
Bezerros crescem. Quando chega a hora de sua terminação, na engorda, obrigatoriamente ganham nova distinção, representada agora por um brinco na orelha direita contendo as pertinentes informações em código de barras. Leitores óticos podem identificar, rapidamente, a origem do animal. Coisa chique.
¨Desenvolvemos um sistema simples, barato e viável para a pecuária sul-mato-grossense¨, aponta o agrônomo José Lemos Monteiro, o Zeíto, presidente do Sindicato Rural de Campo Grande, coordenador do programa. Totalmente aberto e transparente, facilmente auditável, coerente com as normas exigidas pela União Européia, o Pass-Carne/MS reflete uma pequena revolução na pecuária nacional.
A história criou discutível fama para o pecuarista brasileiro. Desde lá atrás, as invernadas de gado foram confundidas com má agricultura, própria de latifundiários. É a chamada pecuária extensiva, de baixa produtividade, perdulária. Depois, naquela época da inflação, o boi, coitado, se baralhava com a especulação fundiária. Quem se lembra do Plano Cruzado, há 20 anos, quando a boiada pagou a culpa da carestia do povo? Triste período da política populista.
Agora, no contexto da proteção da Amazônia, novamente o boi e sua senhora vaca foram detidos, leiloados a preço vil e crucificados, tudo porque mordiam o capim proibido do meio ambiente. Pastagens erigidas nas cinzas de centenárias árvores machucam, com razão, a imagem do agricultor.
Em Mato Grosso do Sul esta página manchada está sendo virada. Pecuaristas modernos, articulados com entidades de pesquisa e conectados a mercados sofisticados, rompem com a desgraçada fama dos gigolôs da terra e assumem sua lição de casa. Constroem, juntamente com o poder público, um rigoroso sistema de defesa sanitária, garantindo a qualidade da carne que oferecem à população. Aqui e lá fora.
Em 2005, focos de febre aftosa foram descobertos na região sul do Estado, em propriedades rurais dos municípios de Eldorado, Japorã e Mundo Novo. Foi um estardalhaço. Mercados externos fecharam suas portas à carne oriunda de Mato Grosso do Sul, atingindo por tabela São Paulo e Paraná. O prejuízo alcançou enorme monta. A tragédia sanitária abalou o conceito do maior exportador de carne bovina do mundo. Uma vergonha.
Três anos de árduo trabalho se seguiram, iniciando-se pela vacinação coletiva dos rebanhos espalhados nas fronteiras da Bolívia e do Paraguai, além dos tucuras existentes nos 20 assentamentos de reforma agrária presentes naquela região. O sucesso da estratégia permitiu que o Mato Grosso do Sul se tornasse área livre de aftosa, embora ainda obrigada à vacinação do rebanho. Gol de placa.
Do sofrimento nasce a sabedoria. Os pecuaristas mato-grossenses do sul cresceram nas dificuldades, superaram desavenças antigas e se organizaram para implantar o passaporte bovino. Justiça seja feita, não foram inéditos. Antes, o pequeno e, nestes dias, sofrido Estado de Santa Catarina já havia criado uma rastreabilidade rigorosa. Os catarinenses, todavia, mantêm apenas 4 milhões de bovinos em suas pequenas propriedades. O Mato Grosso do Sul, que sempre liderou o ranking da pecuária nacional, sendo ultrapassado recentemente pelo vizinho Mato Grosso, abriga um rebanho bem maior, de 21,4 milhões de cabeças.
Desde que os ingleses se assustaram, em 1996, com a doença da vaca louca, os consumidores europeus, americanos e japoneses, principalmente, passaram a exigir que os fornecedores de carne garantissem a boa sanidade de seus rebanhos. Nasceu daí a rastreabilidade bovina. Tal agenda chegou ao Brasil, mas, infelizmente, ainda funciona de forma precária. Pra inglês ver.
Agora, não. O Pass-Carne/MS garante não admitir trambique nem gambiarra. Cada boi abatido guardará sua identificação, permitindo à dona de casa, lá no supermercado, descobrir a origem da carne que pensa mastigar. Num país em que 13% das crianças nascidas não são registradas no cartório, parece luxo. Engano.
Boi rastreado é necessidade; criança anônima, uma vergonha.
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*Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: xico@xicograziano.com.br Site: www.xicograziano.com.br
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