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Dois séculos de promiscuidade
05/07/2009

Imprensa e Poder são amantes no Brasil desde João e Hipólito

“1808”.

Aos filhos da pauta, lição histórica no livro-reportagem de Laurentino Gomes.

Hipólito José da Costa, nascido onde haveria de ser o Estado do Rio Grande do Sul, adolescente aos dezesseis deixou Pindorama.

Estudou em Coimbra, dois anos viveu nascitura república federativa norte americana e, volta a Portugal, preso em Lisboa.

Era 1803.

Ser pedreiro-livre, seu crime.

Dali dois anos – processo do Santo Ofício - fuga para a Inglaterra.

Um trênio mais – mês de junho, coisa de cinco meses pós 22 de janeiro daquele 1808 quando a Corte pisou a terra brazilis, em Salvador -, o jovem editou o primeiro jornal pátrio, no frio cinza londrino, drible à censura.

“Acreditava numa constituição equilibrada e justa, num Congresso forte, em liberdade de imprensa e religião, no respeito pelos direitos individuais”.

Assim, sob o prisma das idéias, o descreveria o historiador ianque Roderick J. Barman, que o denominou “English wig” – em comparação aos parlamentares britânicos liberais, cujo ideário basilar consistia no limite ao poder do rei, à ampliação das garantias e direitos individuais.

Observe-se, aqui, o adiantado liberalismo bretão, que desde a “Revolução Gloriosa” (1689) caminhara para a monarquia constitucional, inda vigente, ao passo que na França – onde o marco institucional data século adiante (1789) -, foi mais penosa, demorada, acomodação do Estado democrático.

Importante anotá-lo para entender a efervescência de idéias e jornais na capital inglesa, naquele limiar de século XIX.

Àqueles dias, em Londres circulavam 278 jornais.

Conta o jornalista:

“Esse número incluía periódicos ingleses, como o já venerável The Times, e também uma infinidade de jornais em língua estrangeira, ali publicados para fugir à censura e à perseguição em seus países de origem, caso do brasileiro Correio Braziliense, de Hipólito da Costa”.

À luz de Barman, Gomes traz a tão mais verdadeira quanto impiedosa leitura sobre o caráter do pioneiro periodista pátrio.

“O mesmo Hipólito que defendia a liberdade de expressão e idéias liberais acabaria, porém, inaugurando o sistema de relações promíscuas entre imprensa e governo no Brasil. Por um acordo secreto, D. João começou a subsidiar Hipólito na Inglaterra e a garantir a compra de um determinado número de exemplares do Correio Braziliense, com o objetivo de prevenir qualquer radicalização nas opiniões expressas no jornal”.

Negociado por D. Domingos de Sousa Coutinho, embaixador luso em Londres, desde 1812 o “acerto” garantiu gorda pensão anual a Hipólito – a troco de palavras menos duras no Correio Brasiliense – do qual D. João era leitor assíduo.

À época, Napoleão Bonaparte confessava mais temer a três jornais que às baionetas milhares...

A sutil virulência grafada nas páginas do Correio Braziliense, sugere o quantum da ‘taxa de zelo’...

Primeiro já na chegada à Guanabara da Corte, aos 07 de março de 1808, quando o Rio de Janeiro contava pouco mais ou menos de 60 mil habitantes e, a fim de acomodar ao séquito real, o Poder expropriou milhares de lares – por ordem do conde de Arcos -, sob sistema de “aposentadorias”, requisição das casas para uso da nobreza.

Marcavam-se as habitações escolhidas com as letras PR – “Príncipe Regente”.

Desde sempre o humor carioca: “Ponha-se na Rua”.

Interessante a terminologia se comparada às aposentadorias hoje asseguradas a presidentes, governadores, conselheiros, parlamentares e “nobres” afins...

Também a sigla – PR.

Nada a ver com Paraná.

Nem com algum partido...

Da República de “Meu Rei”...

Volta ao passado.

Hipólito denunciou “medieval” a tal espoliação, “ataque direto ao sagrado direito de propriedade”, que havia de tornar o governo “odioso”.

Antes, em 1907, novinha, na caixa, impressora inglesa fora embarcada, à fuga, na Medusa – uma das naus portuguesas.

Cuidara já D. João de proibir impressoras no Brasil.

Pego “no contrapé” pelo Correio Braziliense, fez editar – três meses atrás da concorrência – o primeiro jornal em solo tupiniquim.

Aos 10 de setembro de 1808 circulou o primeiro “diário oficial”, por assim dizer, a Gazeta do Rio de Janeiro.

Registrou o historiador John Armitrage:

“A julgar-se o Brasil pelo seu único periódico, seria um paraíso terrestre, onde nunca tinha se expressado uma só crítica ou reclamação”.

Ferino, Hipólito denunciou “gastar tão boa qualidade de papel em imprimir tão ruim matéria (...) melhor se empregaria se fosse usado para embrulhar manteiga”.

Noutro episódio, o jornalista mostrou refinada ironia.

Quando os botocudos importunavam colonos e fazendeiros na Província do Espírito Santo, D. João publicou insano decreto, descrito pelo inglês John Mawe.

O Príncipe Regente convidava-os “a habitar nas aldeias, a se fazerem cristãos, prometendo-lhes, se viverem em boa inteligência com os portugueses, que seus direitos serão reconhecidos e, como os outros vassalos, gozarão da proteção do Estado; mas, se persistirem em sua vida bárbara e feroz, os soldados do príncipe terão ordem de lhes fazer guerra de extermínio”.

Editorial do Correio Braziliense rasgou sarcasmo.

“Há muito tempo não leio um documento tão célebre; e o publicarei quando receber a resposta de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra da Nação dos Botocudos”.

Em 1817, Antônio Gonçalves Cruz – vulgo “Cabugá - líder dos revoltosos pernambucanos, via emissários ingleses, buscaria apoio do jornalista, sob promessa de futuro soldo.

Caso vitoriosos, Hipólito seria onipotente ministro da sonhada república.

Desconheciam o “acerto” de 1812.

Ouviram não.

Fizeram foi valorizar o “cala boca”.

É o que dá a entender o embaixador Coutinho em oficial despacho.

“Eu tenho-o contido em parte até aqui com a esperança da subscrição que pede. Eu não sei outro modo de o fazer calar”.

Por "subscrição", entenda-se hoje “taxa de zelo”.

Dezembro de 1822, dez anos depois do “acerto” – três meses após o “Grito do Ipiranga” – sepultado foi o Correio Brasiliense.

Novo “acerto”.

Agora com Pedro I.

Hipólito fechou o jornal.

A troco, nomeou-o o Imperador agente diplomático do Brasil em Londres.

Dá cá...

Toma lá...

Não é de hoje.


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