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TEMA LIVRE : Sebastião Carlos Gomes de Carvalho

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A imensa dor
30/10/2009

Quando, semana passada, publiquei o artigo em memória de Mercedes Sosa, não esperava receber tantos e-mails se referindo ao fato. Menos por mérito do articulista, é óbvio, que pelo tema abordado. No fundo, creio, é porque estive falando de uma espécie muito forte de emoção, que toca muitas pessoas, mas que tão poucas são capazes de transmitir. Uma emoção que simultaneamente comove e indigna, demonstra ternura e gera rebeldias, que leva às lágrimas, mas que é capaz de fazer erguer os punhos. A bem da verdade, acredito, que só a mulher é capaz de realizar tal feito: a dor contida explodindo em mil trovões, mesmo que assim não se queira; o silêncio do sofrimento percorrendo célere os caminhos da energia cósmica e acelerando vulcões. Ah ... o jeito das mulheres expressarem a dor. O sentimento profundo que fazem partir do centro da alma e que espraia por todo o universo.

A espiritualidade de um grito amordaçado ou lançado para fora como numa explosão de milhares de átomos é bem diferente quando expresso por uma mulher. Raramente o homem deixa de trazer nesse grito de dor as sementes do ódio e da vingança. Não que nas mulheres tais sentimentos não apareçam, mas só nelas, e com elas, é capaz de a dor se manifestar em seu estado mais puro, decantada de sentimentos menos nobres. Que fazem sofrer, isso também. A história e a literatura estão repletas de mulheres que fizeram sofrer. Mas isso é capítulo de outra história. Importa mais a maneira, o modo aparentemente despojado, com que se deixam envolver pela dor, pelo sofrimento.

Este ano mesmo faz seis séculos que veio à luz uma das imagens mais fortes e pungentes do sofrimento e que, desde então, tanto encanta e comove a humanidade como a deixa aterrorizada e petrificada. Refiro-me à escultura de Michelangelo conhecida como Pietà. A dor da mãe que recolhe o filho em seu regaço, a serenidade trágica de sua face, a dignidade com que se apresenta, a doçura extrema com que olha o filho morto, não há como não se envolver por esse clima que tanto comove com a dor da mãe, mas que indigna pela violência sofrida pelo filho. Quantas mães hoje em nosso país não são modestas pietàs?

Um grito contido, uma voz sufocada, um choro sincopado, uma face crispada, a dor exposta por uma mulher sensível, comove, derretendo coração, transpondo muralha de mil defesas, rompendo o tempo da vida e, muitas vezes, criando um destino. Os exemplos são abundantes ao longo da história.

Dias atrás estive lendo uma mulher que viveu e expressou profundamente esse tipo de dor. Anna Akhmátova, a admirável poeta russa. Só valorizada e reconhecida tantos anos depois de sua morte em 1966. Teve ela a dignidade e a força moral para enfrentar um ditador sanguinário e cruel, dos maiores tiranos que a humanidade já viu, que foi Stalin. Foi com um verso sofrido e pungente que Anna se retratou: “Está mulher está doente/ está mulher está sozinha / o marido no túmulo, o filho na prisão”. Esse verso faz parte de um conjunto de poemas que é um dos mais impressionantes testemunhos do sofrimento individual sob a opressão política. Expressa a ternura que revolta, a piedade que explode de indignação. Só uma mulher é capaz de expressar com essa força a dor contida.

...

*Sebastião Carlos Gomes de Carvalho é professor, advogado, escritor e ex-presidente da Academia Mato-grossense de Letras


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