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TEMA LIVRE : Gabriel Novis Neves
Levei um pito
09/03/2010

É próprio do cuiabano referir-se a uma repreensão, como pito. Não tenho o hábito de passar pito em ninguém, mas em compensação levo pito todo santo dia.
Sabe que acho bom? Muitas vezes é a oportunidade para um papo. Chego ao hospital (embora muita gente ande espalhando que deixei de trabalhar) e ao passar pela recepção encontro um casal conhecido de avós. Antes do meu cumprimento social, levo o maior pito da vó, pior, sem saber o motivo. A vó revoltada liga a sua metralhadora em cima de mim e descarrega toda a sua munição verbal.
“A minha netinha de quatro anos foi operada agora de hérnia inguinal bi-lateral. O ato cirúrgico foi rápido, sem nenhuma intercorrência. Inclusive já falei com ela, que está bem com a mãe e o pai no centro cirúrgico. Acontece que estamos aqui, aguardando um quarto que está sendo preparado para recebê-la. Um absurdo, a cirurgia terminou há vinte minutos, e nada do quarto”.
O pito que na verdade foi um pitão, estava com os seus minutos de glória findando. Enquanto a vó abria a enorme bolsa para procurar o cigarro, tive a oportunidade de falar sobre o problema ( da vó).
Disse que a sua netinha estava sendo atendida no melhor hospital infantil de Mato Grosso. Tudo que é bom é muito procurado. Atendemos crianças não só de Cuiabá e Mato Grosso. Já atravessamos as nossas fronteiras. Para melhorar a auto-estima da vó, relatei que recentemente duas netas minhas foram operadas neste hospital. Sempre aviso as minhas clientes que irão ser submetidas aos procedimentos cirúrgicos, que o ato cirúrgico tem horário programado. A chegada ao quarto poderá ser demorada, pois provavelmente dependerá de uma alta. Relatei que a minha neta depois de operada, ficou quatro horas no centro cirúrgico aguardando um quarto.
Observei que a vó estava tranqüila. Não sei se pela “sedação” do cigarro, ou pela minha conversa terapêutica. Achei o momento oportuno, para perguntar-lhe: quem é o responsável por esses transtornos desagradáveis?
A vó percebeu que tinha dado um pito errado. Para reabilitar-se gritou para que todo mundo ouvisse: o governo! Obrigado doutor, o senhor me fez compreender o que os governos realizaram pela saúde em nosso estado. Fecharam hospitais, sucatearam a saúde pública, o único hospital federal que atende só pacientes do SUS está na UTI, e o nosso velho hospital municipal após morrer de inanição financeira, está sendo embalsamado. Esses são os únicos responsáveis, concluiu a vó.
O vô que a tudo ouvia, acrescentou com sabedoria: e nós também que votamos neles e os idolatramos, tanto é que são candidatos ou apoiadores de candidatos nas próximas eleições.
Finalmente chego ao meu consultório, para fazer a única coisa que procuro: tentar entender o sofrimento humano.
...
*Gabriel Novis Neves -- o "Índio Véio" --, é médico obstetra, primeiro reitor da Universidade Federal de Mato Grosso -- UFMT, "ginecologista" estatutário e compulsório do Grupo Fazendas Reunidas Perereca Enterprise, Broadcasting & Corporation e nas -- poucas -- horas vagas, compositor.


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