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TEMA LIVRE : Sebastião Carlos Gomes de Carvalho
Um Homem Decente
13/03/2010
Ao longo da história, algumas palavras vão se tornando raras e muitas esmaecem com o tempo, quase que desaparecendo. Aliás, as palavras, a semântica, são fruto de seu tempo. Juntar o substantivo e o adjetivo qualificativo que encimam este texto está deveras se tornando raro e precisam ser desencavadas, soterradas que estão por um tempo em que os valores que constituem a base da nacionalidade desmancham no ar. Assim, recuperemos estas expressões para designar um homem no qual confluem todas as qualidades de um homem decente.
Decente, probo, humilde, competente, simples, direto, humano. Numa palavra: um Homem digno. Que qualificativos se pode ainda usar para um ser humano que, como poucos, reunia em si as qualidades originais do cristão? E dizer para ele cristão era talvez trazer à superfície a pérola de todas as palavras. Quem o conheceu sabe bem o que para esse ministro de Cristo representava essa expressão.
Conheci pessoalmente Domingos Iglesias a não mais que dez anos. Ambos somos membros do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e participamos de várias das reuniões mensais. Desde há uns quatro anos, passei a conviver mais de perto com ele, quando começou a ir diariamente a Casa Barão de Melgaço. Como presidente da Academia Mato-Grossense de Letras ali dei expediente diário nos quatro anos em que estive a frente da instituição. A partir de um determinado momento, Iglesias começou a freqüentar diariamente o local. Toda a manhã lá estava no salão principal, e lá se deixava ficar até um pouco antes do meio dia, quando ia para casa. Lia um pouco, mas na maior parte do tempo ficava como que flutuando no ar, com o olhar distante, como que recordando de sua longa trajetória de vida. Um dia resolvi ir além daqueles dois dedos de prosa que diariamente trocávamos. Contou-me parte de sua vida, mas o tempo mais recente é o que mais estava lhe marcando. Falava pausadamente e baixo, embora em tom forte, e por vezes como que de arranco, demonstrando uma fugidia indignação. O velho engenheiro sofria enquanto uma nuvem de tristeza passava por seu olhar cansado e a amargura invadia sua face encanecida. Iglesias relatava que fora forçado a deixar o órgão da Defesa Civil do Estado, no qual estivera por mais de três décadas. Achava que ainda tinha muito a fazer por lá. Daí o sentimento de ter sido traído. Era como se estivesse no vazio. No aniversário em que comemorou os oitenta anos, pudemos testemunhar o quanto era querido e respeitado. Serviu-lhe de desagravo. A tristeza amainou, um pouco.
Quando parte um homem como Domingos Iglesias Valério testemunha-se o empobrecimento não somente da vida pública, mas igualmente da rarefação de virtudes humanas que estão se tornando crescentemente raras. Talvez este seja momento para celebrá-las.
Conheço poucos tão apaixonados pela profissão como ele o foi, e nela, pelas coisas da terra adotiva. Há mais de meio século em Mato Grosso , foi notável a sua contribuição para a engenharia regional, tendo estudado em profundidade os recursos hídricos, particularmente o regime de cheias e vazantes do rio Cuiabá. Doutor em Portos do Mar, Rio e Canais, foi, por décadas, professor na UFMT. Merece sublinhar ainda a indiscutível contribuição que deu para a concepção do projeto da ferrovia, que se tornaria no grande mote da vida política do ex-senador Vuolo. Mas não foi só isso, seu entusiasmo e dedicação espraiaram-se por outras áreas tão pouco visíveis como a da criação da APAE, a instalação da Cruz Vermelha em Mato Grosso , além de inúmeras atividades beneficentes.
Desse mineiro-matogrossense se pode dizer em letras garrafais e flamejantes: Um Homem Decente. Um Homem Digno. Ele possuía aquela dignidade a que Foscolo se referiu como sendo nosso único asilo, invejável ao céu e aos homens, a dignidade da nossa alma.
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Sebastião Carlos Gomes de Carvalho é advogado, professor, escritor e membro da Academia Mato-grossense de Letras
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