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TEMA LIVRE : João Vieira
Inutilezas que valem
02/07/2010
“Inutilezas” são um enfoque poético em Manoel de Barros, agora vertido para o teatro graças à lucidez, mais que mera sensibilidade da jornalista e atriz carioca Bianca Ramoneda. Teve ela, contudo, parcerias pertinentes, como a contenção em cenário singelo e apoiamento musical de molde, onde tudo virara fonte e originalidade na crueza despojada de sua propositura e encenação.
É MB sintetizado em seu protesto poético, mais delicado que gozador, porém terrificante, à soberba utilitarista, que atropela os tempos e compromete o mundo. O mais importante é que tudo é buscado (e conseguido) através da palavra, não por sua fluência expositiva, mas sua desconstrução. E que, não fosse poesia, seria pretensiosidade, à semelhança dos títulos em número sem conta – vale dizer – reparos de todos os ângulos e formatos que a inteligência humana ousa evidenciar por metodologias e disciplinas as mais diversas. Mas o torto resiste e persiste materializando-se atos falhos, donde a razão de ser da oportuna dramatização das “inutilezas”.
São menos de duas horas de encenações em torno do simples e do óbvio ou, de outro ângulo, sobre o empolado ou artificioso, onde o institucional caricato é malhado sem perdão. Igualmente, o que é errado, velhaco, interesseiro ou apenas figurativo, não fica sem chumbo. E tome crítica ... poética! Daí, o genial da coisa como só se vê num Fernando Pessoa, num C.D.A., João Cabral ou o velho Souzândrade (recorde-se que Souzândrade versejou cem anos passados na temática “Inferno de Wall Street”), para ficar com os poetas; também Euclides da Cunha ou Guimarães Rosa para dizer de azes da prosa corrida. Isto para nos atermos aos que escrevem em português.
Por oportuno recordo que em texto de apreciação à obra de Silva Freire, poeta de “Águas de Visitação”, dissemos que um poema pode operar a iluminação crítica de um relatório de mil páginas! Nossa crença não refluiu. Ao contrário, reforça-se em comprovações, mas o mundo continua o mesmo. O mesmo? Assim o seria certamente se não houvessem crescentes ameaças de sua extinção, tanto por ataques às partes, quanto agressões ao seu todo.
Conclui-se, portanto, pela validade do ato crítico, preferencialmente via poesia, porque bela no intrínseco de sua estética e forte na sua tendência ao lirismo. Que arrebata! Pena que as “armas da cultura” não sejam suficientemente levadas a sério, pois poderiam, com máxima garantia, ajudar no desate do “nó górdio” que empaca essa nossa era crítica.
Anote-se, por fim, que há as “inutilezas” prosaicas e pedagógicas da valoração especial de Manoel de Barros e as inutilidades do progressismo inconseqüente. Aqui se diz das obras disfuncionais, muitas delas dispendiosas, mas inócuas, obstrutivas, senão mesmo prejudiciais. Citemos casos como o das famigeradas centrais nucleares reputadas inapropriadas e cujos componentes jazem enferrujando em depósitos expostos à maresia, no nosso litoral; ou o grande aeroporto “internacional” de Confins, em Minas Gerais, subaproveitado.
Ainda no Brasil o caso de patéticas inutilidades em fazendas e estradas rasgadas na Amazônia, esquecidas, ou já inteiramente tragadas pela floresta. Isto, reafirme-se, a custos incalculáveis, tanto de ordem material quanto humana, incluso o trágico banimento de aglomerados tribais da face da Terra. E mais e mais “realizações”, daqui e d'alhures, furadas no seu alcance econômico e destinação social. Por essas e outras não há certeza se houve, nas noites de apresentação de "Inutilezas", mera dramatização da boa poesia ou lição livre de filosofia.
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*João Vieira, sociólogo, professor-fundador da Universidade Federal de Mato Grosso e ex-diretor do Museu Rondon da UFMT. E-mail: joaovieira01@pop.com.br
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