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TEMA LIVRE : Lúcio Flávio Pinto
O açaí é nosso. É mesmo?
20/09/2010
O roubo de sementes de seringueira é apresentado até hoje como o mais grave caso de biopirataria da história da Amazônia. O inglês Henry Wickham, que ganharia título de nobreza pela façanha, é acusado de contrabandear para a Inglaterra duas toneladas de sementes da Hevea Brasiliensis. Aclimatadas em Londres, as sementes foram plantadas na Ásia.
O plantio deu tão certo que a Amazônia, fornecedora monopolista de borracha na transição do século XIX para o XX, foi para o rabo da fila dos produtores e nunca mais recuperou a antiga posição. O Brasil deixou de ser auto-suficiente e a Amazônia nem é produtora significativa no mercado interno. Tudo por culpa de um inglês astuto e imoral.
A indignação de hoje é a mesma de quase um século atrás, quando as colônias asiáticas das potências européias passaram a inundar o mundo com borracha incomparavelmente mais barata e abundante. Na verdade, porém, não houve contrabando. Wickham despachou a carga pelos meios legais e até patrocinou um convescote antes do embarque, em Belém, com a presença de autoridades e pessoas gradas da sociedade local. Há provas suficientes e convincentes do fato. Mas se a Inglaterra, a maior potência da época, precisasse roubar as sementes, certamente não se inibiria. Tinha extensos antecedentes.
Indispensável adensamento
A quantidade e os preços da borracha amazônica eram incompatíveis com a escala de desenvolvimento que a indústria estava então em condições de seguir. O que a empacava era a insuficiência da oferta e os valores abusivos cobrados em função do monopólio. Os brasileiros até desdenharam a empreitada de Wickham. A árvore da borracha não era nativa da região? Como podia dar melhor em outro lugar? Impossível.
Não era, provou a história, reconstituída com lucidez pelo americano Warren Dean no já clássico A Luta pela Borracha no Brasil. Se a natureza foi pródiga (mas também caprichosa) na tessitura do ambiente físico na Amazônia, foi fatal em relação à Hevea Brasiliensis. A árvore atinge um porte atlético, com até 50 metros de altura, e uma fecundidade excepcional apenas nas condições naturais, dispersa no meio de muitas outras espécies.
A biodiversidade, quintessência do valor natural amazônico, hoje tão exaltada, mostrou-se fatal sempre que se tentou adensar seringueira na mata. E o adensamento era indispensável para aumentar a produção e a produtividade, sem o que ficou impossível concorrer com os plantios asiáticos.
Adensada, a seringueira é atacada por pragas, que a tornam estéril ou improdutiva. Henry Ford amargou essa constatação ao formar seus plantios no vale do rio Tapajós, no Pará. Depois de 17 anos de experimentos, ao custo de muitos milhões de dólares, desistiu e foi buscar seu suprimento na Ásia. A ecologia se revelou implacável com as tentativas de enriquecimento de seringueira na Amazônia.
A mais internacionalizada e a mais
tardia na integração à nacionalidade
Qualquer pessoa minimamente informada não tem mais dúvidas a respeito. No entanto, a maioria prefere continuar a acreditar que o colapso da borracha, antes da crise do café, resultou de uma conspiração do imperialismo. As iniciativas de contar a história real também nada mais seriam do que a persistência do mesmo interesse estrangeiro, através dos seus porta-vozes mercenários.
Essa posição tem impedido a sociedade, como em outros episódios da história da Amazônia, de enfrentar e superar problemas reais que cotidianamente se impõem à região. O prejuízo dessa mistificação é enorme porque a Amazônia é a mais internacionalizada das regiões brasileiras e a mais tardia na integração à nacionalidade. Sua incorporação física tem apenas meio século e ainda não está completa (de certo modo, felizmente: a integração tem sido sinônimo de devastação, em amplo espectro).
O erro fatal cometido em relação à borracha pode estar se repetindo no caso do açaí. As reações dos leitores ao artigo divulgado na minha coluna no site do Yahoo, com mensagens perspicazes e provocativas, além de enternecedoras e gentis (112 no total), mostram que a sociedade está a reboque dos fatos consumados. O governo vem ainda mais atrás, se é que está acompanhando a dinâmica histórica.
Deixar de ser fruto amazônico, um risco
O descompasso entre os fatos criados pelos agentes dessa história, atuando sem coordenação e sem apoio ou regulação, pode provocar efeito – não semelhante, mas comparável – à crack da borracha, que se seguiu, em tão curto intervalo, ao seu boom. Foi uma história de menos de meio século.
São numerosos e complexos os problemas que precisam de solução para evitar as previsões feitas por muitos leitores: que o açaí deixará de ser produto genuinamente amazônico (e, sobretudo, paraense) e que os maiores ganhos serão obtidos por atravessadores e comercializadores, fora dos limites regionais (e até nacionais).
É preciso, primeiro, ter uma idéia da grandeza da economia do açaí. Para o produtor ele representa algo como R$ 2 bilhões. Colocado à mesa do consumidor, esse valor se multiplica, no mínimo, três vezes. Pode chegar a R$ 6 bilhões. Não há fruta que renda tanto.
Frutas típicas não faltam na Amazônia. A sorveteria Santa Marta, bem antes da Cairu, se tornou célebre porque chegou a oferecer 103 sabores de sorvetes, em sua maioria de frutas nativas e únicas. É espantoso que a estrutura governamental não contemple um instituto do açaí ou de frutas tropicais. É uma fonte de receita que já é muito significativa agora e pode se tornar grandiosa nos próximos anos.
Claro que a política oficial não pode ser montada num dia para se completar no outro. O maior desafio na Amazônia é criar conhecimento científico. A dificuldade está em dispor de verba para sustentar a frente do saber tanto quanto em estabelecer uma postura adequada sobre a complexidade regional. Um conhecimento superficial é passaporte para uma atividade efêmera, conforme mostram numerosos casos do passado.
Vinho puro e grosso, paladar superior
Mal circularam informações sobre o poder cicatrizante do óleo da copaíba e já eram comercializadas cápsulas a granel. O efeito tóxico do óleo, nocivo para o aparelho digestivo, se contrapôs ao seu poder curativo. Não houve pesquisa suficiente sobre os princípios ativos da essência para a formulação de um medicamento completo.
A investigação científica sobre as frutas amazônicas, e, em particular, o açaí, é incapaz de responder sequer às indagações feitas pelos leitores da coluna na internet. Menos satisfatórios ainda são os dados socioeconômicos, necessários para montar uma base econômica, industrial e comercial para o produto.
Personagens que se encontram nas várias etapas do processamento do açaí acumulam conhecimentos específicos que lhes dão expertise e maestria no que fazem. Por isso há pessoas ganhando muito dinheiro com a exploração da palmeira – e não só para extrair o suco: há o apreciado palmito, o uso da palha, o artesanato criativo e bonito.
Do açaí, nada se joga fora. Mas o retorno é desigual e injusto: só favorece a alguns. E pode prejudicar a maioria, que aprecia beber o vinho puro e grosso, a sua melhor forma e seu paladar superior.
Como conciliar o consumo interno com a crescente exportação? Como difundir o “verdadeiro paladar do açaí”, conforme observou um leitor, em meio a manipulações tão diversas – e legítimas, porque atendem a demandas de consumidores distintos? Como conciliar a busca de um terroir, que garanta o melhor sabor e o maior preço, com a demanda do mercado local, a exportação com a necessidade interna?
Qual a rota a seguir para dar maior durabilidade ao açaí e manter suas propriedades originais para que chegue mais longe sem se desnaturar, em tal medida que, socializado por baixo, pela ausência do melhor paladar, acabará por ser cultivado em qualquer lugar com condições ecológicas semelhantes às nossas?
Se quem pode decidir e, ao invés de fazer a parte que lhe cabe. espera por decisões vindas da regulamentação automática do mercado (esta, uma ficção), dificilmente o açaí terá desfecho melhor do que o da borracha. Não por fantasias utilitárias, mas por efeito da ação – às vezes cruel – do mercado.
Chagas, uma doença real
A propagação dos casos de doença de chagas associados – como conseqüência automática – ao açaí tem função invertida à do contrabando da borracha. Ao longo de séculos em que os paraenses beberam diariamente seu vinho de açaí, mesmo quando ele já estava azedo, a doença não existia, não se manifestava ou não era percebida.
Hoje existe e é real. Não pelo açaí em si, mas pelo crescimento do consumo sem o acompanhamento da higiene. A pasteurização, que seria a resposta automática, já proposta no parlamento, esbarra no dano que causa ao melhor paladar da fruta e na cultura local. Seria o veio através do qual se infiltraria a internacionalização predatória.
O problema existe, a causa é clara e a solução está ao alcance. Só falta a vontade de fazer melhor. Este é o produto mais em falta na Amazônia – e no Brasil.
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*Lúcio Flávio Pinto é editor do ¨Jornal Pessoal¨
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