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TEMA LIVRE : Haroldo Assunção
Segredo de Justiça ou censura prévia?
19/10/2010
Semana passada, o juiz José Arimatéia Neves da Costa – da Vara de Crimes Contra a Ordem Pública – notificou redações de veículos de comunicação matogrossenses, proibindo qualquer publicação referente ao depoimento prestado pelo empresário Pérsio Briante ao Ministério Público Estadual (MPE), peça do inquérito policial – sob segredo de Justiça – instaurado para apurar suposto superfaturamento na recente aquisição de caminhões e máquinas pesadas pelo governo do Estado.
No documento – datado em 01 de outubro – o magistrado adverte aos jornalistas que o descumprimento da ordem pode sujeitar aos rigores da lei.
Data maxima venia...
É lícito, em defesa da liberdade de expressão e pensamento – garantia constitucional, pedra angular da democracia -, discordar do insigne julgador.
A investigação em tela trata do suposto pagamento de R$ 44 milhões a maior, pelo governo do Estado – à época sob o comando de Blairo Maggi (PR), agora senador eleito – na aquisição dos maquinários.
Trata, portanto, de figura pública – e de dinheiro público.
Interesse público, por conseguinte.
Neste ponto, interessante observar a opinião do jornalista Antonio Carlos de Oliveira, mestre em comunicação, assessor de imprensa da seccional maranhense da Ordem dos Advogados do Brasil.
“A divulgação, pela imprensa, de casos que correm em segredo de Justiça envolvendo políticos e autoridades vem levantando a discussão sobre o direito dos cidadãos ao acesso de informações públicas e os limites do sigilo em processos judiciais; muitos juristas acham que, em casos de interesse público, mesmo havendo segredo de Justiça, a imprensa deve investigar denúncias e divulgar informações à população”.
E prossegue:
“No Brasil, há jurisprudência favorável aos veículos de comunicação que noticiam casos que tramitam em segredo de Justiça; a tese que prevalece é a de que a proibição da divulgação violaria o princípio da liberdade de imprensa, assegurado constitucionalmente – não se pode potencializar o segredo de Justiça em desfavor do interesse público que se sobrepõe ao interesse individual”.
O poder facultado aos magistrados para decretar segredo de processo ou investigação não é novidade – vem desde o “Estado Novo” e a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945).
Tampouco é novidade a mordaça judiciária à imprensa.
Recente caso exemplar foi protagonizado pelo desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), que proibiu ao jornal O Estado de S. Paulo a publicação de reportagens referentes à “Operação Boi Barrica”, da Polícia Federal, e ao empresário Fernando Sarney – filho do presidente do Congresso Nacional, senador José Sarney (PMDB-AP) -, um dos principais investigados.
A censura prévia ao Estadão provocou reações em diversos segmentos sociais, particularmente na esfera jurídica.
“Só se admite o sigilo em casos especialíssimos; no caso do [jornal] Estado, o interesse público prevalece sobre o privado – se há relevante interesse público, é fundamental que os dados sejam publicados”, opinou o presidente do Ministério Público Democrático, promotor de Justiça Roberto Livianu.
“A censura, já abolida, não pode retornar disfarçada de legalidade”, fez côro o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante.
Da mesma forma, o ministro Marco Aurélio de Melo, do Supremo Tribunal Federal (STF), faz dura crítica ao uso indiscriminado do segredo de Justiça. Para ele, a publicidade é regra e o uso injustificado do sigilo judicial “além de revelar uma visão míope, retrógrada, é um ranço de uma época da qual não se sente saudade”.
O notável jurista Ives Gandra Martins reitera.
“O segredo de Justiça serve para proteger aqueles que necessitam da proteção do Estado, como menores de idade e família; o papel da imprensa é informar, com responsabilidade – qualquer abuso pode ser punido a posteriori e nunca a priori”.
Idêntica a opinião do advogado e ex-juiz de Direito Luiz Flávio Gomes, segundo o qual, “autoridades que lidam com recursos públicos e seus parentes têm nível muito reduzido de privacidade, ao contrário do cidadão comum; no caso, o papel do [jornal] Estado é legítimo, porque a imprensa cumpre o seu papel de fiscalizar o exercício do poder”.
E acrescenta:
“Se os mecanismos de proteção são falhos, quem deve responder são os responsáveis, jamais o jornalista; aceitar a censura prévia equivale a rasgar a Constituição”.
A polêmica segredo de Justiça versus liberdade de expressão e direito à informação extrapola a fronteira tupiniquim.
Além-mar, o jornalista Antonio José Laranjeira, antigo diretor de um semanário, foi condenado em 2004 por violação de segredo de Justiça. Ele publicara informações referentes a processo no qual um médico – fundador do PSD e então presidente da Assembléia Municipal de Leira – era acusado de abuso sexual contra uma paciente.
Em janeiro deste ano, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou o Estado português a indenizar o jornalista.
No acórdão, a Egrégia Corte Européia ressalta que “o interesse público se sobrepõe quando estão em causa inquéritos envolvendo atores políticos; a condenação do jornalista pelos tribunais nacionais implica um efeito dissuasor do exercício da liberdade de expressão”.
Em comento ao caso, o jurista luso Nuno Garoupa – professor de Direito na University of illinois College of Law e na University Manchester School of Law – faz um comparativo em relação aos Estados Unidos, goste-se ou não, reconhecidamente uma das mais sólidas democracias contemporâneas.
“Nos Estados Unidos, o segredo de Justiça aplica-se a todas as investigações federais ou estaduais de delitos graves (as chamadas ‘grand jury investigations’); estão sujeitos e obrigados os procuradores, as polícias, os membros do ‘Grand Jury’, e ainda os arguidos e respectivos advogados”.
E acrescenta:
“A imprensa não está obrigada pelo segredo de Justiça, seja em que circunstância for, nenhum jornalista pode ser condenado por divulgação de matérias de segredo de Justiça, não existem providências cautelares para impedir a publicação de matérias em segredo de Justiça; a liberdade de imprensa é total no que toca ao segredo de Justiça – mais livre não pode ser”.
E por quê dá certo? - é de se questionar.
“Pois porque simplesmente funciona. Todos sabemos quem está na origem das violações, o procurador responsável pelo processo; evidentemente que muitas vezes não é o procurador quem viola diretamente o segredo de Justiça, mas sobre ele recai a responsabilidade processual de o proteger. Nos Estados Unidos, quando há uma violação grave do segredo de Justiça, o procurador responsável é exemplarmente castigado por desobediência ao tribunal – o procurador falhou o seu dever de proteger o segredo de Justiça”, ensina o emérito doutor.
De volta a solo pátrio – e ao caso em tela -, é de se destacar que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, qualquer previsão legal que obrigue o jornalista ao segredo de Justiça.
Tal dispositivo – ao qual estão sujeitos apenas funcionários públicos – justifica-se só e tão somente quando há risco de exposição pública de questões privadas do investigado ou réu, como relacionamentos amorosos e doenças, ou quando o processo contém documentos sigilosos, como extratos bancários, fiscais ou escutas telefônicas.
Seja como for, vale insistir, obriga sempre os servidores públicos – jamais os jornalistas e veículos de comunicação.
No depoimento prestado aos 04 de junho de 2010 à delegada de Polícia Judiciária Civil Alana Cardoso e aos promotores de Justiça Mauro Zaque e Ana Cristina Bardusco, da 11ª Promotoria de Justiça – Defesa do Patrimônio Público e Improbidade Administrativa -, o empresário Pérsio Briante fez revelações de absoluto interesse público.
Narrou o suposto “jogo de cartas marcadas” que teria sido o pregão para compra dos maquinários. E que o superfaturamento justificaria a “devolução” – leia-se: pagamento de propina, corrupção, passiva de um lado, ativa de outro – de cinco por cento dos contratos a “membros do governo do Estado”.
Disse também que o valor lhe teria sido cobrado em espécie pelo então secretário de Estado de Infraestrutura, Vilceu Marchetti – o qual teria afirmado textualmente que o dinheiro seria destinado ao financiamento da campanha do à época governador Blairo Maggi ao Senado da República.
Entre outras revelações cabulosas e cabeludas.
Tudo de absoluto interesse público, por mais que o digno magistrado entenda de outra forma...
Logo, aparentemente não se justifica in casu o sigilo judicial.
Muito menos a abusiva censura prévia – posto que sequer a investigação policial foi prejudicada, uma vez que o depoimento do empresário já é de conhecimento público, anteriormente veiculado na internet.
Oportuno lembrar o decano jornalista Jânio de Freitas.
“O segredo de investigações policiais é fácil de compreender; o de Justiça é um segredo”.
...
*Haroldo Assunção é jornalista
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