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TEMA LIVRE : Valéria Del Cueto
O grão de feijão
21/11/2010
Nasceu num feijoal, lavoura bem cuidada. Com água na medida certa e uma dose mínima de agrotóxicos, para espantar as pragas indesejáveis. A terra era boa. Nem arenosa demais, nem argilosa em excesso. Veio de um broto formoso, de um bem cuidado pé de feijão.
Viu pela primeira vez o mundo através de uma película esverdeada, com o céu azul e diferentes texturas, normalmente aconchegantes e confortáveis, em tons de verde, inclusive seus irmãos de vagem. Na medida em que amadureciam, iam ficando escurinhos.
Num chacoalho foi arrancado do pé, após acompanhar o barulho que cresceu ensurdecedor da colheitadeira gigantesca. Ferro, vidro, borracha, fumaça e muito, muito barulho.
Não podia, grãozinho fresco que era, imaginar o que seria sua vida daquele momento em diante, depois de sua agressiva separação do casulo/talo que o ligava a planta mãe.
Tivera uma idéia da violência antecipada ao ver a máquina engolir uma faixa enorme de pés vizinhos a sua fileira, a próxima. O que não lhe deu muito tempo para pensar antes de ser tragado pelo som ensurdecedor, bem na hora em que apertou o olho querendo fechar os seus poros para se livrar do desconforto. Que ilusão.
Ser, volto a ressaltar, tragado, apertado, revirado e movido em tão poucos e cabulosos segundos não fazia parte do sortimento de experiências - bastante limitado e escasso, começava a achar - que já havia conhecido em sua existência de caroço de feijão.
Muitas sacudidas, várias sensações de apertamentos sufocantes (graças ao céu – que só conheceu um mesmo – não era claustrofóbico), a impressão de ser polido, entre roldanas manivelas e bandejas, e analisado de alto a baixo, em toda sua rechonchuda e negra extensão e lá está ele. Perdido entre centenas de milhares de outros iguais, na escuridão aquecida e – finalmente – silenciosa de um silo qualquer.
Tenta estabelecer contato com os demais. Grita enlouquecido que quer sair dali, olhar o céu, ter o direito a sua dose diária de água refrescante, ao som do bater das asas das libélulas e do zumbido dos insetos que circulam no campo aberto.
Ninguém se mexe, não há resposta.
Olha em volta. Não adianta. Vê apenas diferentes partes de outros tantos, incomunicáveis. Jura ver no olho do gorducho onde apóia sua casca lateral o mesmo desespero que sabe haver no seu.
Máquina, movimento, apertamento, sacolejo. A queda por empurrão é mais rápida que a lei da gravidade. De todos os lados estreitamento, sufoco, movimento em direção a claridade.
Empacotamento, sem ar, plástico, calor, transbordo, embotamento pelo excesso de informação. Deslocamento, embalagem num pacote maior, com outro empacotados. Arrumação, aperto, empurra ajeita e... ei-lo!
Novamente olhando o mundo, que deu sorte de ter se movido em direção a frente do seu pacote, quase na beirinha, orgulhosamente empilhado na parte de baixo da gôndola do supermercado. Quase lá em baixo.
Do outro lado do plástico vê uma montoeira de pernas, sapatos, rodas de carrinhos e as prateleiras em frente. De produtos diet. Não tem o que reclamar. Há vida, ainda que não possa se comunicar com ela.
Só lamenta não poder mais ver a noite. O supermercado é 24 horas.
...
*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Mais Valéria em http://delcueto.multiply.com
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