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TEMA LIVRE : Montezuma Cruz

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O fim de Gauchão até hoje é um mistério
23/01/2011



Aumentava cada vez mais a resistência dos posseiros de Presidente Epitácio. Quando a jagunçada vinha com a conversa da tal porcentagem cobrada sobre a produção de cada família pelo fazendeiro José Gonçalves da Conceição, Zé Dico, ninguém queria dever nada a ninguém. Paulo Kuriaki, sua mulher Júlia e cinco filhos receberam a visita de Zé Mineiro, bandido procurado pela polícia de Mato Grosso, mas contratado por Zé Dico.

Paulo Kuriaki, sua mulher Júlia e cinco filhos receberam a visita de Zé Mineiro, bandido procurado pela polícia de Mato Grosso, mas contratado por Zé Dico. Primeiro a defender os posseiros contra o confisco de produtos a mando do fazendeiro, Kuriaki conseguia impedir que aquele jagunço lhe tomasse a criação de porcos. “Eu volto aqui”, prometia-lhe Zé Mineiro, enraivecido. Dois filhos de Kuriaki, José Carlos, 14, e Armando, 17, eram agricultores.

Na Delegacia Regional de Polícia de Presidente Prudente, Zé Dico chegou a ser indiciado em inquérito por constrangimento ilegal. No entanto, era intocável. Enquanto isso, em 1967 Gauchão seria acusado de “atividades contra-revolucionárias”.

A essa altura o jornalista Edmur Péricles Camargo, o Gauchão já estava na região, onde conversava com gente simples e observava atentamente o movimento na Fazenda Bandeirantes. Vinha de experiências anteriores, pois agitara os canavieiros na “Revolta de Porecatu”, norte do Paraná, durante o enfrentamento com a polícia daquele estado, entre 1951 e 1953. Desinformado, até 1967 o DOPS do Paraná nunca soubera quem ele era.

Força Pública chega à Fazenda Bandeirantes

Quase sessenta anos se passam daquele episódio. Com raríssimas exceções, Presidente Epitácio desconhece quem era Gauchão, porque agia daquela maneira e a razão desse apelido. O matador de Zé Dico era paulista da capital, onde militava no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Participaria de um capítulo histórico na luta pela reforma agrária no Brasil, marcado por choques armados e cidades ocupadas. Era o teste de fogo para futuras ações da Aliança Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighela. (Leia no final do texto a ficha de Gauchão, segundo o DOPS paulista).

Provavelmente, Gauchão tenha articulado com Kuriaki, autor do primeiro enfrentamento ao pelotão de jagunços de Zé Dico. Há um vazio nessa parte da história, um assunto que a própria cidade de Presidente Epitácio desprezaria ao longo dos anos, sem examinar o seu real valor para compreender o período turbulento vivido pelo País.

Ao ligar o motor do bote para escapar do cerco dos jagunços, em 11 de junho de 1967, Kuriaki era atingido por um tiro fatal de rifle. Vieram outros tiros, todos disparados por Zé Mineiro. Paulo e Armando, filhos de Kuriaki, morriam na hora. Julia, a mulher, era atingida de raspão.

A temperatura do conflito elevava-se. O comando da Força Pública enviava imediatamente à Fazenda Bandeirantes uma tropa com 12 soldados armados de metralhadoras. Zé Mineiro, que estava com prisão preventiva decretada, fugia para o Estado de Mato Grosso (Mato Grosso do Sul, desde 1977), do outro lado do Rio Paraná, o Paranazão.

Durante 67 anos a corporação militar estadual paulista chamava-se Força Pública, atravessando três períodos distintos da vida republicana. O último deles terminava em 1970, quando o Exército impunha o atual nome de Polícia Militar, uma fusão entre a antiga Força Pública e a então Guarda Civil do Estado.

O desejo dos posseiros era o de vingar Kuriaki. Daí para o assassinato de Zé Dico por Gauchão não passariam quatro meses.

¨Perigoso¨ para o regime militar

Após as mortes de Zé Dico e do posseiro Kuriaki, Gauchão sairia do País. Teria sido executado pelos militares nas matas do Iguaçu, tal qual eles teriam feito com outros contestadores do regime? Das dúvidas, existe uma certeza: ele fora um dos investigados pelo Centro de Informações do Exterior (Ciex), organismo da diplomacia brasileira que colaborava com as ditaduras sul-americanas.

Em 2007, reportagem de Cláudio Dantas Sequeira no Correio Braziliense constatava: dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime militar, 64 deles apareciam no arquivo secreto do Ciex como oponentes da ditadura militar. Criado com o apadrinhamento do temido Serviço Nacional de Informações (SNI), o Ciex extrapolava a caça a estudantes, operários e intelectuais; não poupava políticos, empresários e até diplomatas de países socialistas ou comunistas em missão oficial dentro do território brasileiro.

Gauchão era considerado uma ameaça ao regime. Seria um dos 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Conforme os documentos do Ciex examinados pelo jornalista do Correio, o regime sabia da intenção de Gauchão em montar uma base guerrilheira na Bolívia e suspeitava de que cumpriria a promessa de assassinar um asilado político suspeito de infiltração entre o grupo. Em 1971, o grupo de 70 banidos, depois reduzidos a 62, com a viagem de oito membros, olhavam entre si, desconfiados. Um deles fora colocado ali para espioná-los.

Estava selado o destino de Gauchão numa viagem do Chile para a Argentina em 1971. Perseguido até as últimas conseqüências, Gauchão deixaria Santiago do Chile rumo a Buenos Aires, a fim de fazer um tratamento ocular. Havia sido torturado no DOPS em São Paulo e as seqüelas comprometiam a visão. Ainda conforme os documentos secretos, ele desembarcaria no Aeroporto Internacional de Ezeiza, onde estavam a postos policiais argentinos e brasileiros, apoiados por informantes infiltrados na companhia aérea LAN-Chile. Essa aliança entre as polícias chegou a envolver até a Itaipu Binacional, a hidrelétrica brasileira e paraguaia.

História sem fim

No entanto, o desaparecimento do militante só seria oficialmente registrado como ocorrido em 1975, quatro anos depois. Para onde o teriam levado? Onde o teriam matado? Nas matas do Iguaçu, na fronteira Brasil-Paraguai-Argentina?
O informe 133/71 consultado pelo jornalista Cláudio Sequeira dá a entender que o desaparecimento dele teria sido a maneira de os militares evitarem que ele de fato executasse um dedo-duro infiltrado entre os comunistas.

Relatório do Ministério da Marinha entregue em 1993 ao então ministro da Justiça Maurício Correia faz uma breve menção a Edmur Péricles: “Jun/75, preso por autoridades brasileiras e argentinas quando seu avião fez pouso em Buenos Aires, em viagem do Chile para o Uruguai. Usava o nome falso de Henrique”. (Henrique Vilaça). E só.

Daí em diante o destino de Gauchão envolvia-se nas nuvens cinzentas daquele período ditatorial em que a polícia, o Exército e a diplomacia se davam as mãos para salvaguardar o arbítrio e a tortura.

FICHA DE GAUCHÃO NO DOPS PAULISTA

Documento incompleto e pouco legível do Setor de Análise, Operações e Informações, do DOPS-SP, com data de 13 de novembro de 1967, diz que Edmur Péricles Camargo teve prisão preventiva decretada em 1968 e indiciado em Inquérito Policial Militar (IPM), em 1970, por subversão no Rio Grande do Sul, junto com outros membros do Movimento Marx, Mao, Marighella, Guevara (M3G)

■ Documento do Serviço de Informações do DOPS-SP, de 24 de abril de 1970, reproduz informações prestadas por Edmur Péricles, quando preso no DOPS de Porto Alegre. “Ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1944; a partir de 1946 passou a trabalhar no Sindicato dos Armadores, no Rio de Janeiro e, em 1952, trabalhou como jornalista em A Tribuna Gaúcha, órgão de imprensa do PCB, em Porto Alegre-RS”.

■ “Com o golpe de 1964, refugiou-se no Uruguai. Voltou para o Brasil e refugiou-se, em 1967, numa chácara do Partido em Ferraz de Vasconcelos, freqüentada pelos militantes da Ala Marighella, como Joaquim Câmara Ferreira e Nestor Veras. Na VI Conferência do Partido, em 07/67, em Campinas-SP, Luiz Carlos Prestes perdeu o controle da direção estadual em São Paulo para Carlos Marighella. Em 04/69, Edmur resolveu desligar-se do grupo Marighella e foi para Porto Alegre, onde organizou o grupo Marighella, Mao Tsé-Tung, Marx e Guevara (M3-G). Fez contato com a VAR-Palmares, em Porto Alegre, com Gustavo Buarque Schiller, que se encontrava preso nesta cidade, para onde foi enviado por Juarez Guimarães Brito, coordenador da VAR-Palmares (*), na Guanabara.

■ Foi banido do território nacional, em 1971, em virtude de ter sido trocado pelo embaixador suíço; e, segundo artigos da Folha de S. Paulo, de 1975 e 1976, foi indiciado em IPM que apurou as atividades do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Ação Libertadora Nacional (ALN).

■ Na ficha pessoal sem identificação consta que ele fez curso de guerrilha no Uruguai. Pedido de busca datado de 13/6/69, do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), a diversos órgãos da repressão, informa: “Edmur é negro e forte, tem cerca (sic) de 54 anos de idade; é antigo dirigente do Comando Estadual do Rio Grande do Sul do Partido Comunista Brasileiro (PCB); atualmente está ligado ao grupo de Carlos Marighella, usa identidade falsa com nome de Henrique Vilaça;

■ Em 1967 esteve envolvido em IPM em Presidente Prudente (SP) por atividades “contra-revolucionárias”.

■ Documento produzido pelo Comitê Pró-Memória dos Desaparecidos (Santa Catarina) sobre a militância e a morte de João Batista Rita conta que esse jovem “militava no M3-G com Edmur, chegando a ser o segundo homem da organização, que era basicamente gaúcha e preconizava a guerrilha urbana como forma de tomada do poder. Foi preso em 1970 e banido do país em 1971. Foi visto pela última vez na noite de 13/01/74 nas dependências do DOI-CODI, no Rio de Janeiro, em péssimo estado físico, ¨visivelmente torturado¨, conforme relatório da ONU, em Genebra.

...

*Montezuma Cruz é jornalista, escritor, editor do saite ¨Amazônias¨ e colaborador-compulsório do Saite Bão


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