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TEMA LIVRE : Wagner Malheiros
Herói esquecido
20/02/2011
Era uma escuridão sem fim, a mata úmida e fechada o encharcava, os galhos rasgavam ainda mais as roupas esfarrapadas enquanto se arrastava. Já se passaram muitas horas desde que saíra, o coração batia desesperado no peito.
Queria voltar, não queria a sensação de fuga que o assolava , seria melhor morrer que ter partido. Tinha medo que o chamassem de covarde, por ser o único a sobreviver, que o imputassem culpa da morte de seus companheiros.
Os olhos doíam, as lágrimas saíam como se areia tivessem.
Apertou o passo como pode, escorregando, escalando barrancos, seguia ao lado do rio que corria a poucos metros.
Sabia que a poucas léguas encontraria gentio, por sorte alguma fazenda. Conhecia a região, mas a memória não ajudava, o pensamento estava embaralhado. Não conseguia pensar, não queria parar, apenas queria ir, chegar e falar.
Quantas horas se passaram? Às vezes parava achando ter escutado algo ao longe, imaginava ser som de artilharia. O coração apertava mais.
Estariam todos mortos? Corria ainda mais, rezava e praguejava, se arrependia de praguejar e rezava com mais fúria.
A camisa toda rasgada era protegida onde carregava a carta. Tinha que entregá-la, era sua missão, por ela não morreria com os seus, por ela tinha partido.
Implorou quando soube que a levaria, que fosse outro, havia gente mais jovem.
O Tenente, com aqueles olhos fundos, disse que não. Colocando as mãos sobre meus ombros, em voz baixa pediu que eu fosse, que contasse, que alertasse ao povo.
Quantos éramos? Pouco mais de uma dezena, somando aos voluntários do povoado, um pouco mais. O Tenente até pediu que saíssem. Alguns foram, os que ficaram sabiam de seu destino, não eram soldados, mas sabiam ser heróis.
O som do inimigo faziam-nos tremer, era involuntário. Centenas, aguardando nossa rendição, prontos para massacrar-nos. Informaram que mais de duzentas bocas de fogo iriam atacar.
Vá! Ouvi e não chorei.
Abracei os poucos companheiros, alguns me derem papéis pequenos, rotos, com poucas linhas. Eram para os seus, para mulheres e filhos longe, para pais, para os que amavam.
Corria ainda mais, as botas haviam se perdido na lama, os pés agora dormentes não sentiam o solo.
Longe vi luz.
Acheguei devagar, não queria assustar. De longe assuntei minha presença. A voz saiu rouca, alguém ouviu?
Responderam, uma lamparina alumiou. Me apresentei, com vergonha sentei no chão. Mal falava. O homem se aproximou e vieram outros. Tinha dado numa corrutela. Me deram água.
Curiosos me cercaram. Tirei a carta enlameada e entreguei ao que me pareceu mais velho. É para levar ao Comando de Miranda, disse.
Ele relutante a pegou, desdobrou e leu a luz de lamparinas. Leu e releu. O silêncio presente se desmanchou quando disse, era perdido, que tinham chegado e todos deveriam ir rápido.
Que diz a carta?, perguntaram.
O velho respondeu, invadiram nosso país. O posto de Dourados caiu.
A carta é do Tenente Antonio João Ribeiro. O que ele escreveu? insistiram.
Está escrito: "Sei que morro, mas meu sangue e o dos meus companheiros servirá de protesto solene contra a invasão de minha pátria!"
...
*Wagner Malheiros é médico pneumologista em Cuiabá
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