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O Outro Lado Porque tudo tem dois, menos a esfera.

TEMA LIVRE : Wagner Malheiros

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Um crepúsculo no passado – 1962.
21/02/2011

Maneco acordou num suspiro, o dia dormia e o crepúsculo ainda tardava. A friagem da madrugada incomodava suas pernas, inda mais depois que suas juntas começaram a inchar quando quedou doente. Sentou devagar no leito e apalpando as velhas pernas, vagarosamente ia alinhavando suas obrigações, num exercício mental em que procurava despertar para as tarefas do dia.

A mata começava a cantar, os pássaros da noite adivinhando o dia que chegava, gorjeavam o alvorecer.

Acendeu o palheiro, a brasa alumiou seu rosto vincado de rugas. O fogão de lenha emitia um lusco-fusco que dançava ao sabor da brisa, fazendo parecer que as sombras corressem como infantes inquietos. Maneco levantou e em breves passos, alcançando a cuia d'água atiçou o braseiro quase morto, fazendo fogo morno para o café ralo da manhã. Lembrou da mulher, que se viva, o café já estaria pronto. A lembrança do acordar com o aroma do café feito por dona Maria, trouxe tristeza. Conformado, agradeceu a Deus e procurou se atentar as tarefas que urgiam, mas a sombra da lembrança assestada sobre seus ombros magros perdurou. Não lembrava mais quando tinha chorado, a saudade era sentida como um peso dentro do peito.

O rio ali perto o esperava, sua canoa de cambará repousava amarrada ao sarã da margem. Após o magro desjejum, o homem velho em pequenos passos trilhou a breve escuridão, que separava seu barraco das margens do velho arroio do Cuiabá. Esmerilhou a pequena tralha de pescaria, acercando a canoa à margem para iniciar o dia de trabalho.

Maneco subiu na canoa com dificuldade, sentou-se no tosco banco e com o remo longo zingou para o meio do rio. Lentamente remando debruçou a mão na água e sentiu-a morna escorrendo pelos dedos . Ia devagar, a saúde precária não o permitia grandes esforços e lembrou que o último abuso resultou em internação na Santa Casa por quase dez dias. Tomava todos os remédios, mas não dispensava o chá de Nhá Mariana, sua cunhada e madrinha de seu neto. Lembrou dele, do menino que hoje era homem e que em permanente arroubo de se instruir morava longe, se sustentando em pobreza na cobiça de ser alguém. Seu filho, pai do menino hoje homem, se quedou aqui na terra, tentou comércio, garimpo e acabou de serventia como boiadeiro de pouca remuneração. O menino que tomou gosto pelos livros, como febre jurou ser doutor e apesar das admoestações de muitos, não vergou o desejo e hoje estava lá, capital do país, morando na cidade q ue tinha um mar imenso. Mar este que as vezes assombrava seus sonhos, que seu neto contou ser salgado. Na certa exagero de encantamento, pensava.

Adensando a sombra do luar junto ao baixio, soltou a amarilha da poita e iniciou o preparo dos anzóis. Não precisava de luz, seus dedos trabalhavam de forma mágica, adestrada por décadas de pescaria. Era época dos pacus e aquele horário antes do raiar do dia era propício. Ajeitou o parco material e iniciou a pesca. Não gostava de ficar sozinho, em tempos idos tinha companhia, mas agora ficava sempre só, ainda mais após dona Maria ter falecido. Ela sempre ralhava como se ele criança fosse, pedia para não ir para o rio sozinho, que o coração era ruim e o médico tinha recomendado repouso e moderação nos costumes.

Fazer o que? Estava velho e doente, desde que existe lembrança sempre pescou para viver. Os filhos cresceram pelos poucos cobres que vendia seus peixes, em especial os pacus que pescava agora. Lembrou que antigamente vendia para o moço do município, que levava os pacus, preferindo os gordos em que se tirava a banha, para serventia aos postes de iluminação das ruas do porto. Fedia, mas era melhor que nada, e se pouco alumiava espantava bem os mosquitos.

Voltou o menino a memória. Orgulho tinha , oras se não, ele lá no Rio de Janeiro, na tal Praia Vermelha, onde ele ouvia o neto contar da sua faculdade do prédio grande, da boina que todos usavam orgulhosos no passeio de bonde, distintivo dos novos alunos de medicina da Escola Nacional.

Lembra que chorou como criança quando contaram que o menino tinha feito prova e passado. Naquele dia temeu a Deus e acreditou em sua existência, percebeu que de sua semente daria serventia a um doutor.

Ah, mas estava doente, e quando seu neto chegou um dia, o examinou e passou os remédios para desinchar as pernas e barriga, que alegria. Tinha até parado de pescar e melhorou rápido. Verdade que não era como antes, que sempre ao chegar ao fim do dia, dava uns pacus aos guris que o ajudavam a carregar os peixes, que vendia para as bancas do mercado. Sempre pescou, viveu assim, porque parar?

Ficar sozinho sempre acendia as lembranças, as vezes achava bom, algumas desgostava. Tinha dado para ficar sentimental, e qualquer coisa se pegava chorando. Hoje estava triste e cansado, mais que o normal. Aquele café de pouca serventia valeu, pensou. Amuou no fundo da canoa e resolveu cochilar. A pescaria estava ruim. Ia sonhar com a formatura do menino, pensou, esboçando um sorriso. A tristeza pareceu pesar mais no peito, lá no alto as últimas estrelas bruxuleavam. Mirou a vista no céu e o viu cada vez mais negro, as pálpebras pesaram e bem longe escutou risos de crianças. O fôlego foi sumindo, uma friagem foi lentamente subindo as pernas, pensou nos seus e imaginou que ia sonhar para sempre.

Foi-se como um passarinho, deitado na canoa que lhe servia de ataúde. O céu clareava, o dia surgia lento.

O menino no Rio de Janeiro só soube da morte do avô dias depois. Chorou e lembrou dos dias que aprendeu a pescar e sonhar com a vastidão daquele rio que desaguava tão longe, num lugar em que as águas ficavam com gosto de choro.

...

Wagner Malheiros é médico pneumologista em Cuiabá


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