|
TEMA LIVRE : Wagner Malheiros
O Senhor dos Passos
22/02/2011
José Manoel morava na Rua 13 de Junho, data comemorativa da retomada de Corumbá. Era português de nascença, vindo ainda de colo da mãe, com o pai que resolveu enricar nas bandas do Mato Grosso.
Acabou com um pequeno comércio, que se não gerou riqueza, ao menos dava à família uma vida digna de pequeno burguês.
Sua casa ficava perto da região do Lavra-Pau. Moradia simples, mas de vastos cômodos, de grossas paredes de adoubo interrompidas pelos largos janelões de madeira, pintados de azul anil, o que dava um belo contraste com as paredes brancas caiadas.
A janela tinha dupla serventia, enquanto arejava seu interior, dava bela vista da rua, na época arborizada às custas de grandes mangueirais e com as sombras raquíticas de pequenas palmeiras imperiais.
O português possuía um bolicho contíguo à casa e se vendia de tudo, dependendo da paciência do freguês. Se não tivesse, mandava pedir, o que demandava meses, visto que as encomendas seguiam rio abaixo, onde se abastecia em Corumbá ou mais abaixo.
A loja andava fechada há dias. Os janelões lacrados davam a impressão falsa da casa estar desabitada.
José Manoel se trancara. A porta da casa, desde então, tinha ficado muda. Com medo, de quando em vez espiava pelas frestas à rua se ouvisse qualquer movimento de passos ou carroças.
Era tempo de medo. Amuado em constrição rememorava as histórias do pai, das guerras de seu país natal, mas nada o assustava mais quando lembrava da tal Rusga, quando mataram muitos de seus patrícios.
Seu finado pai dizia que ao chegar à região pouco tempo após a matança, o povo o olhava de soslaio, mas com o caminhar dos dias fez arrefecer rancores e ele acabou se tornando igual em costumes e falar, o que gerava certa graça ouvir aquele forte sotaque português misturado ao falar nativo.
A empregada estava sumida, mais provável tivesse adoecido ou somado aos que caíam pelas ruas ou sofriam trancados. Não havia casa em Cuiabá em que a mão da morte tivesse deixado de tocar.
À noite, Manoel rezava com fervor à luz das toscas velas. Rezava com voz alta, tentando abafar a ladainha de centenas de vozes, todas mortificadas, que davam à cidade um aspecto mais lúgubre.
O cheiro acre proveniente do lado do Cái-Cái vindo com a brisa, trazia junto a fumaça das fogueiras.
Mulheres e crianças chorando varavam a madrugada até o amanhecer, em que nova contagem de mortos era realizada. As autoridades ansiavam um arrefecimento da varíola, mas o número de mortos só aumentava.
Enquanto para muitos a data de 13 de junho significou alegria, para muitos outros foi motivo de tristeza, pois com a volta dos soldados que retomaram Corumbá do jugo paraguaio, a varíola adquirida naquelas terras veio junto, encontrando campo fértil para disseminar-se, levando a tristeza para quase todas as famílias de Cuiabá.
O preço da coragem da população cuiabana vinha sendo cobrado de forma dura e implacável. O 13 de junho vinha sendo o dia precípuo do maior sofrimento que o povo daquela terra haveria de passar.
José Manoel não acordou bem, a febre começou a consumí-lo.
No decorrer do dia descobriu-se doente. Caiu de cama e lá ficou por dias. Quando a febre arrefecia, acordava, tomava um pouco d´água, para logo soçobrar em nova febre e delírios.
No quarto dia, os voluntários da saúde entraram em sua casa. Lá fora, a carroça atulhada de cadáveres.
Os poucos homens defrontaram com Manoel atirado ao leito e julgaram-no quase morto. Para economizar viagem resolveram levá-lo, não queriam voltar no dia seguinte àquela casa.
Foi jogado por sobre os corpos de muitos. O destino, cemitério do Cái-Cái.
Desceram a rua em direção ao Porto e já na ameaça do escurecer, começaram a despejar a triste carga. As ordens eram claras, deveriam ajuntá-los e montar fogo.
As fogueiras já vinham de muitos dias, mas desta vez a carga tinha sido grande e a viagem cansativa. Resolveram deixar os corpos quietos e atear fogo no dia seguinte.
José Manoel acordou ao amanhecer, a febre se foi. Deparando com os mortos, julgou-se no além. Prostrado, pediu, exigiu e implorou por piedade. Quando a realidade foi apercebida, chorou.
Cambaleante saiu em direção à sua casa. Já próximo, deu com alguns que ao o verem, saíram em disparada. Não entendeu, mas depois julgou tê-los assustado pelo aspecto miserável que carregava.
Ao chegar em sua casa, a decepção. A porta arrombada, na rua restos de roupas e utensílios do dia a dia. O bolicho revirado e tudo levado.
Aquilo não o afetou, nada mais o afetaria. Se preocupou com as economias de uma vida, todas guardadas no bolso interior do colete velho.
Prometeu que se o achasse iria erguer uma igreja.
Entrou na casa e entre os destroços achou o velho colete. Apalpou seu interior e ali estava, guardado, todo seu dinheiro. Não deram atenção à velha roupa.
Poucos anos depois, inaugurou a Igreja do Senhor dos Passos de Cuiabá.
Quem a ergueu?, perguntam.
Um português chamado de Manoel Cova.
...
Wagner Malheiros é médico pneumologista em Cuiabá
Compartilhe:
|
|