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TEMA LIVRE : Wagner Malheiros
O canto do urutau
17/03/2011
O velho tinha fama de doido. Nem era tão velho naquele tempo, mas o desmazelo e os cabelos compridos e fartos junto ao rosto vincado de rugas lhe dava uma aparência envelhecida.
Tinha nascido numa corrutela próxima a Cuiabá. Vinha de gente tradicional da terra, mas do braço familiar que foi gerado era o mais pobre e foi pouco educado nas letras e costumes.
Do pai boiadeiro aprendeu as lidas do trabalho bruto e, desde moço não refugava serviço. O único problema que tinha era de ser avoado. Se na meninice corrigiam os devaneios no arreio, na maturidade as quimeras tinha desvelo solto.
Casou com Benedita, que se não era bonita compensava por ser trabalhadeira e boa parideira. Com cinco anos de casamento já era acompanhado por dois bacurizinhos. A mulher carregava outro no bucho túrgido.
A mulher não era de muita fala e isso para ele era vantagem. Se ela lhe devotava afeição, as vezes duvidava. Mas não tinham brigas e na quietude da labuta eram solícitos.
Os devaneios de José - era assim que ele se chamava - sempre eram em formas e maneiras de arrumar modos e meios de ganhar dinheiro.
Nos últimos tempos vivia assuntando com seus botões de ir para o rumo de Poxoréu, onde diziam à solta que muitos estavam achando diamantes com facilidade nunca vista.
A mulher que só obedecia desta vez resmungou, mas aceitou o destino. Ajuntando a parca miséria com a pouca matula de farinha e carne seca tomou o rumo seguindo o marido, que ia embevecido nos delírios da riqueza próxima.
Foram a pé. Era longe. A estrada era bruta, empoeirada e com poucos descansos para apear a carga e dar desafogo ao corpo.
José impaciente com a riqueza próxima exigia muito das crianças e da mulher, que amuados com a zanga riscavam o chão com os olhos cansados. O guri mais novo exigia muitas vezes o colo e fazia choro frequente.
Benedita tinha deixado a família pesarosa e preocupada. Uma aventura desse tipo, inda mais em região de garimpo em que a lei é ditada pela vontade do cão e pela bala. Sua velha mãe amuou-se em prantos. Mas Benedita sussurrou, que assim era, assim tinha que ser, que papel de mulher era acompanhar o marido e os seus.
Ajeitaram uma grota pouco promissora em uma extensa grupiara que dava mais aspecto para o garimpo do ouro. A mata era fechada e o cantar do urutau deixava mais triste o lugar. As crianças na primeira noite dormiram assustadas com o seu canto que para muitos lembra o grito sofrido das almas do além. Quem já ouviu essa ave cantar não esquece jamais.
José preocupado com as onças do local armou as redes em galhos altos, amarrando a boca das redes para as crianças não caírem. Ficaram tal e qual como em casulos.
Com o passar dos dias a matula foi sumindo e as muitas preás do local tomaram serventia em ralos ensopados. O garimpo não andava e nem o mais reles xibiu aparecia.
A impaciência da mulher era refletida no seu silêncio eloquente. As crianças em suas brincadeiras anêmicas sonhavam com a volta. O mato as assustava e a noite os sons tomavam a imaginação em bizarras criaturas do além mundo.
Um dia chegou gente, vinha montado num burro. As crianças correram e abraçaram as pernas do homem que apeou. Era o tio delas, cunhado de José que vinha para buscar a irmã e os sobrinhos.
A discussão foi áspera e o tio disse que iria levar a irmã nem que viúva fosse. José acabrunhou e aceitou a desfeita. Ajeitaram a pobreza que tinham e saíram rumo à estrada.
Na volta Benedita pariu. Encostada num barranco avermelhado sob o sol inclemente, com as mãos arrancando tufos de capim, deu à luz em silêncio. Era uma guria, bonita.
Um boiadeiro que vinha montado num boi velho ajudou a carregar as crianças.
À frente ia José em sonhos com os olhos perdidos nas nuvens...
Um dos meninos quando virou homem feito contou ao seu filho porque chora ao ouvir o canto do urutau.
E a seu pedido conto esta simples história.
...
*Wagner Malheiros é pneumologista e já escutou o urutau cantar.
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