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TEMA LIVRE : Wagner Malheiros
Tentando responder...
31/03/2011
Tenho orgulho em dizer que sou filho de um médico que trabalhou por décadas atendendo a saúde do povo cuiabano. A única riqueza material que conseguiu conquistar foi a sua casa própria financiada em vinte anos pela Caixa Econômica Federal.
Andava de cabeça erguida e não aceitava desaforo. Era de uma honestidade desconcertante.
Formou dois filhos médicos. Tinha tamanho amor pela sua profissão que transmitiu este sentimento para os filhos. Meu irmão era um excelente profissional e está com Deus, foi embora desta terra cedo demais.
Quando retornei a Cuiabá após a minha residência médica no Rio de Janeiro trouxe na mala muitos sonhos.
Sonhava em poder desenvolver a mesma qualidade de medicina que exercia no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
O meu primeiro desapontamento foi com o Pronto Socorro Municipal. Fui convidado a trabalhar no pronto atendimento e me animei. Fiquei logo horrorizado. Não existia aparelho de eletrocardiograma, doentes eram atirados no chão e os que tinham sorte arrumavam uma cadeira de fio.
Ousei reclamar e fui mandado embora. Comecei a achar que a coisa não era séria.
O segundo desapontamento foi com a medicina de convênios. Na época, o principal convênio de saúde em Cuiabá começou a limitar a realização de exames, procedimentos e intervir em condutas médicas. Auditores chegavam a entrar nos quartos dos doentes para inquiri-los criando um constrangimento dantesco.
Não suportei e resolvi ir para o interior.
O terceiro desapontamento foi assistir como a política tem influencia maléfica na saúde nas pequenas cidades. Os pequenos feudos parecem ser indestrutíveis, apesar da péssima qualidade de atendimento.
A ideologia do governo de esquerda contaminou de tal forma a política de saúde pública que eu era obrigado a conviver com pastorais que tinham o apoio dos mandatários. Curava-se tuberculose com reza, SIDA com raizadas e outras doenças com uma vareta mágica ou um pêndulo que era tal e qual um oráculo. Mistificações passaram a ser estimuladas com carimbo governamental.
Os postos de saúde não tinham medicação e faltava de tudo.
Quando descobriram que eu era pneumologista, as enfermeiras que trabalhavam com as diversas etnias indígenas começaram a me trazer os índios com tuberculose. Trabalhei quatro anos atendendo-os de graça. Tinha gente que ganhava para isso e nada fazia.
Os responsáveis pela saúde indígena eram de uma ONG com sede em outro Estado. Vá entender...
Deixei muitos amigos entre os Erikbaktsas e os Cinta-Largas. Um ou outro me alegrava o dia trazendo um peixe de presente. Era recebido nas aldeias com respeito e alegria.
Infelizmente ali ainda é uma terra em que os seus habitantes odeiam os índios. Se alguém tiver a curiosidade tenho o link de uma gravação na qual um poderoso da região afirma que os índios eram propriedade dos colonos e por isso não aceitava intromissões. Citou os americanos que devastaram seus índios e concluiu que se assim o fizeram lá, assim aqui se podia.
Retornando para Cuiabá pensei na vida. O que fazer?
Resolvi partir somente para a clínica privada. Deixei os convênios de lado e resolvi trabalhar com uma medicina sem pressa, atenta aos pacientes e de qualidade. Meu único trabalho passou a ser o meu consultório.
Com o tempo passou a existir uma demanda de doentes do serviço público me procurando.
Vinham em busca da realização de um exame chamado broncoscopia, que nada mais é que uma endoscopia da árvore respiratória em que se faz inúmeros procedimentos, incluindo biópsias de tumores.
Eram doentes do SUS buscando resolver seu problema na clínica particular.
Fiquei então sabendo que existe uma fila imensa de doentes necessitando do exame. Entrei em contato com alguns responsáveis por hospitais públicos e o desinteresse foi latente. Ofereci meu aparelho para realizar o procedimento e nada.
Há dois dias realizei uma broncoscopia em um senhor do interior do Estado, já cansado de esperar uma resposta do SUS. Felizmente a prefeitura da sua cidade arcou com os custos, pois o paciente era muito pobre. Realizei a biópsia de um tumor de pulmão já observado em radiografia realizada há alguns meses.
E se ele continuasse na fila?
E os que estão na fila?
Estou longe do atendimento na saúde pública, mas é inaceitável vivenciar tais situações. Poderia muito bem manter o silêncio e tocar minha vida, mas a sensação de indignidade não deixa.
Remoendo essas questões pensei em escrever algo a respeito. A decisão final veio após ler o artigo chamado “Fila” que recebi por via e-mail, escrito pelo professor Gabriel Novis Neves.
Vejo o professor como um dos poucos colegas com críticas cristalinas sobre nosso momento atual.
No seu artigo, entre outras coisas, ele interroga o porquê dos pacientes mofarem na fila por um exame de broncoscopia, citando como exemplo um senhor que depende da biópsia de um câncer de pulmão para iniciar o tratamento e lutar pela sua vida, tal e qual o que foi atendido por mim recentemente.
A resposta, meu caro professor, infelizmente é a falta de seriedade e comprometimento de muitos, como tento relatar acima.
Um dia a coisa muda.
Enquanto isso o povo continua sofrendo e se não fosse por alguns, sofreriam em silêncio.
...
*Wagner Malheiros é médico pneumologista em Cuiabá/MT
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