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TEMA LIVRE : Wagner Malheiros
Os índios e o milagre por linhas tortas
15/07/2011
Era um dia qualquer em meu ambulatório.
Estava morando no interior do Mato Grosso, em uma cidade com menos de cinqüenta mil habitantes. Em muitos aspectos a vida por lá lembrava a minha Cuiabá de menino, com o tempo correndo mais lentamente e o ritual dos convescotes – modestos churrascos - quase diários.
A cidade pequena nos torna mais próximos, o que pode ser ruim ou bom. No meu caso, que sofro da síndrome do Ermitão, as freqüências em tais compromissos me deixava mais sorumbático que o normal.
Pois bem, estava eu naquela região em que o cerrado e a floresta se abraçam e, eis que chega o carro da tal ONG ou coisa parecida, que cuidava dos índios da região.
Médico pneumologista é raro, ainda mais por lá. Quando as zelosas enfermeiras que davam atendimento às diversas tribos daquela vasta região descobriram que eu era especialista em Tisiologia – bonito nome para a nobre tuberculose – correram buscando auxílio.
O atendimento dessa enfermidade era precário e acabei aceitando tratar dos índios, sem nenhuma remuneração. Se bem que, por vezes ganhava uma ou outra matrinchã, o que valia e vale muito para mim, humilde apreciador dos peixes.
Comecei a atender em grande número os Erikbaktsas. São conhecidos também como Canoeiros, pela exímia arte da canoagem, ou então por índios beiços-de-pau, pelo costume – hoje raro – de esticarem os lábios ou as orelhas com pedaços chatos de madeira. Ritual este, adotado por muitos jovens modernos em tribos de shopping center.
São índios pequenos os Canoeiros, de baixa estatura e compleição esquálida, carregando uma triste história de quase extinção nas mãos do homem branco, ainda se portando de forma arredia ao contato. Os brancos moradores da região não gostam dos índios, o que por vezes me causou e causa grande indignação. Os adjetivos costumeiros vão de vagabundos à sub-raça. Por lá o índio não é um ser humano com vontades e desejos. A idiossincrasia do explorador o enxerga como um estorvo a ser eliminado ou corrompido.
Habitam uma grande área triangular, sendo um dos vértices o encontro do rio do Sangue com o translúcido rio Juruena. Os rios da região são no geral de águas diáfanas, em alguns podendo se enxergar ao fundo com boa profundidade.
Então... O carro chegou e desceram - o motorista, a enfermeira e alguns índios. Vez por outra eram os Cinta-Largas ou os Enawene Nawe, mas os que chegavam como de costume eram Canoeiros.
Eu atendia os índios em qualquer lugar, fosse no hospital ou no posto de saúde.
Desta vez era chegado um cacique que não conhecia. A enfermeira disse que eram das bandas do rio do Sangue. Eu sabia que naquela localização eles eram mais numerosos e melhores nutridos, visto que o rio do Sangue é muito piscoso.
Para os Erikbaktsas/Canoeiros que habitavam do lado do rio Juruena a situação era mais complicada. E eram dois os motivos. Na margem direita tinha acesso os brancos, mas o pior eram os Enawene Nawe, com seu terrível costume de pescaria com o cipó do timbó.
Eles batem o cipó na água e esperam os peixes morrerem. O problema é que morre tudo. Como o berçário dos peixes são as lagoas junto ao rio, eles acabam por praticamente exterminar as águas próximas às suas aldeias.
E então começaram a invadir a área dos Canoeiros. Descendo o rio Juruena por dezenas de quilometros em grupos numerosos e belicosos, praticamente exterminaram as lagoas da região - acabando com a mais importante fonte alimentar dos pequenos índios.
Os Enawene Nawe são índios grandes, sobrevivendo basicamente do consumo do peixe e mel - são hábeis melicultores e péssimos pescadores.
Os Canoeiros, mal reclamavam e humilhados resmungavam sua sina triste. Dias após a passagem dos invasores, o fedor dos peixes mortos atravessava distâncias. Por cima das lagoas, uma triste nuvem de urubus assinalava a maldade.
Como dizia... desceram alguns índios e a enfermeira. Já de longe percebi tratar-se de um cacique.
Veio proveniente do rio do Sangue, de uma aldeia próxima ao Salto do Roncador, local que já conhecia de fama, pela violência das águas. O rio por lá se divide numa miríade de corredeiras que torna praticamente impossível a navegação.
Após consultar o cacique, recebi o convite de conhecer sua aldeia e de pescar por lá, o que é uma rara demonstração de prestígio.
Apesar das admoestações – incluindo alguns sugerindo que seria devorado -, acabei indo.
Marcado o dia, tralha arrumada, parti para a nova experiência, rezando não virar serventia para um petit déjeuner ou algo semelhante.
Chegando, achei que tinha escolhido dia impróprio. Aquele ano estava sendo muito ruim de pescado e, o pior, como os Enawene Nawe tinha dizimado os pesqueiros do rio Juruena, o pouco pescado retirado do rio do Sangue ainda tinha que ser dividido entre todas as aldeias.
A sorte dos índios do rio do Sangue é que existem alguns lagos que não podem ser invadidos por nenhuma tribo. Os acessos são protegidos por incontáveis corredeiras, o que transforma a navegação naquelas águas um grande perigo. Mas, mesmos esses lagos não podem ser pescados em excesso.
A situação estava ruim.
Após os cumprimentos de praxe acabei indo pescar com alguns índios. A região que é farta nos grandes trairões - alguns pesando mais de vinte quilos -, estava desoladora. Nada de peixe.
No final da tarde voltei à aldeia de mãos vazias.
Tomei um belo susto ao chegar à barranca - os índios estavam ali numa alegria incontida.
Quando vi o motivo não acreditei. Eram centenas de jundiás pegos. Para quem não sabe, o jundiá é um peixe de couro de sabor inigualável. Muitos corriam para pescar naquela fartura súbita, provendo seus estoques para o resto do ano.
Não havia explicação para o fato, parecia um milagre.
Fui embora feliz.
Dias após, na cidade, veio a explicação. Um fazendeiro da região estava criando milhares de jundiás cruzados com o surubim.
Dizem que a imensa represa de tão gorda não agüentou. Rompeu e uma avalanche de peixe foi parar no rio. Era tamanho o volume que durante meses todos se fartaram.
Para os que acreditam que os índios nada são, deveriam se atentar. Acho que naquele dia alguém lá em cima olhou por eles e mandou recado.
Meninos, eu vi...
...
Wagner Malheiros é médico pneumologista em Cuiabá/MT
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Comentários dos Leitores
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Comentário de fazndeiro da região (jorgepiresmiranda@hotmail.com) Em 15/07/2011, 20h26 |
peixes |
Fico feliz de saber que alguem la em cima olhou por eles . Mas confesso que me causou muitos transtornos e trabalho para recontruir a represa . " Que Deus proteja as reprezas e abençoe a proliferação dos peixes no Rio do Sangue e Juruena". |
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