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TEMA LIVRE : Valéria Del Cueto
Sem florzinhas não dá!
11/09/2011
Uma bolinha, duas bolinhas, três bolinhas, quatro bolinhas, cinco bolinhas, uma florzinha.
É o começo de um jardim de canto de página, ainda sem folhas. Elas virão mais tarde, como ornamentação de espaço e equilíbrio do desenho.
Desde sempre desenho fores e folhas nos cantos de páginas abertas em reuniões, preleções e esperas. Fazê-las é como contar histórias sem precisar escrevê-las, enquanto capturo e apreendo falações menos interessantes do que as bolinhas monótonas que se juntam para formarem lindos e delicados desenhos florais.
De vez em quando, muito raramente, acrescento novos elementos às tramas de paciência que me permitem ficar quieta, ouvindo teses, tratados, teorias, monólogos alheios sem me incomodar demais.
As sessões “assim falou” são normais nos meus ramos de trabalho e necessárias para que nós executores, possamos fazer o produto conforme o gosto do freguês.
Portanto, é melhor se empenhar para captar a essência da coisa de cara do que ficar tentando fingir que anotou muita coisa.
Minhas florezinhas já me causaram sérios problemas. O pior deles foi ter sido proibida de sorrir em reuniões. Acreditem. Foi assim:
A reunião, um pouco tensa, corria solta. Dela participavam quatro pessoas. Assunto sério e eu e as florezinhas: bolinha, bolinha, bolinha, bolinha, bolinha, florzinha.
O trem se alongando, o canto da página invadindo o resto da folha.
Elas começaram. Quando pensei na abundância e fartura do meu jardim, riram pra mim. Primeiro, um sorrisozinho meio tímido. Depois, mais abertos, gargalhantes, até. Felizes.
Seria muita falta de educação não retribuir...
Ciente da minha situação no mundo irreal da pancadaria federal que comia na mesa de reuniões, apenas esbocei um leve sorriso que se abriu um pouquinho.
Foi o suficiente para ser interpelada grosseiramente por um dos participantes sobre o significado do gesto gentil.
Nem tive tempo de responder. Antes, ainda embalada no recém aberto espectro de sorriso, intercambiado com as florezinhas do caderno, estampei aquele que aflorava com tanto gosto.
Logo após, diante da minha reação involuntária, veio a sentença implacável: “A partir de agora você está proibida de sorrir em reuniões”.
A princípio não entendi o que ele queria dizer exatamente. Mas só a princípio, por que, para deixar bel claro, o vivente repetiu a proibição, decretando o mau humor permanente durante os próximos meses.
Olhei em volta, Os outros participantes, estupefatos, não reagiram. Nem eu. Pra que discutir com a madame?
Foi o trabalho mais triste que já fiz na vida. Para chegar ao fim, tive que aposentar as florezinhas, fechar a boquinha e reagir pouco às ações mirabolantes que se seguiram a essa estupidez.
...
*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Esta crônica faz parte das séries Parador Cuyabano e Ponta do Leme, do SEM FIM http://delcueto.multiply.com
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