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TEMA LIVRE : Valéria Del Cueto
Sempre ele
27/11/2011
Ficou olhando aquela grandura. Como se estendia preguiçosa numa sem cerimônia abusada e cheia de atitude, nem aí pra realidade nua e crua do entorno: placas de propaganda, anúncios de refrigerantes, um trailer de sanduíches estacionado à sua sombra. A mais completa tradução de como poluir visualmente uma obra prima da natureza.
Tá bem que naquela temporada as coisas tenham sido mais amenas na vizinhança, sem maiores queimadas, o que permitia que a vegetação adjacente ao menos beirasse os pés de sua exuberância natural. Mesmo assim, não se incomodava segura de sua superioridade plástica e libertária.
Foi ela que chamou a atenção. Sempre foi assim, e não tinha por que deixar de ser. Trocar o certo pelo duvidoso não fazia parte do seu show. E que show!
As folhinhas minúsculas de um verde ofuscante que formavam e compunham as folhas maiores contrastavam com o amarelo invadido e dominado pelo vermelho profundo das delicadas pétalas indisciplinadas e espaçosas de suas milhares de flores. Elas pareciam pesar e nivelar a altura dos frondosos galhos da árvore em questão, um lindíssimo flamboyant de beira de estrada. Daqueles que distrai o motorista que passa avoado fixando na tela ocular, o retângulo com o piso preto do asfalto, as laterais em animados, porém quase sempre monocórdios tons de verde, e o azul quase constante do céu.
Em resumo, ali havia uma escandalosa explosão da natureza, quase camuflada pela ação humana.
Um flamboyant leva a outros flamboyants. Uns reais, já que é época de florada da espécie, e outros que se recusam teimosa e peremptóriamente a abandonarem suas mais deliciosas lembranças.
Só quem já morou embaixo de um pé de flamboyant sabia do que falava. A espera pela florada, as cores se espalhando e multiplicando a cada nova manhã. A colheita das flores que caem sacudidas pelo vento.
É, por que ter um flamboyant na vida é um caso de amor ou de ódio. Tudo depende de como se encara a quantidade incrível de pétalas e flores que precisam ser “limpadas” do terreno diariamente. Achava pessoalmente bem mais divertido do que recolher mangas caídas de uma mangueira, depois (ou antes, dependendo do ponto de vista) da fase das folhas secas.
Entre outras razões, por que flores têm mil e uma utilidades. Basta um pouco de imaginação para achá-las perfeitas em vitrines ou enfeitando arranjos de natal.
Esse nunca foi seu forte, os arranjos de natal, mas a brincadeira de utilizar para a quantidade incrível de resíduos florais, ainda frescos que seriam destinados à lixeira, levou ao ritual anual de comemoração cristã. O experimento consistia em recolher e alimentar com as flores o piso do salão/presépio.
O ajudante achava que as flores murchariam e melariam, fazendo uma tremenda (agora sim) sujeira no local. Devido a insistência, pelo bem da pesquisa científica de aproveitamento dos resíduos, concordou em executar a tarefa de recolher o material ao pé da árvore e jogá-lo no espaço determinado.
- Mas não poderíamos das uma varrida antes de jogar as flores novas? – insistiu. Diante da negativa, começou a “operação flamboyant” que, para grata surpresa de todos, foi um tremendo sucesso.
As flores mudavam de um tom avermelhado para alaranjado, depois iam adquirindo tonalidades de ocre e marrom. Em vez de melarem secavam criando um lindíssimo contraste com a cor viva das novas levas que chegavam recolhidas fresquinhas do pé da árvore.
Este flamboyant mágico se foi, mas sua lembrança enfeita todos os natais e, neles, seu espírito colorido e acolhedor renasce a cada ano...
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*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Esta crônica faz parte da série Parador Cuyabano do SEM FIM http://delcueto.multiply.com
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