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TEMA LIVRE : Valéria Del Cueto
A voz de Deus
17/06/2012

Será que amanhã vai ser novamente como era antes? Pensava ontem antes de dormir já antecipando acordar como havia acontecido de manhã pela voz maravilhosa da Fátima, uma ex-moradora da comunidade da Babilônia.
Antes, era o tempo em que na casa da minha avó aqui no Leme, despertava ao som das cantorias religiosas (nada é perfeito, não é?) da ambulante livreira do bairro descendo pela escadaria do morro que dá na Gustavo Sampaio para ir trabalhar. Quando me mudei para o Rio, tive a sorte de alugar um apartamento justamente por onde ela passava. E seu canto foi uma espécie de reconhecimento de que estava no meu lugar, no meu Leme.
Sempre fui freguesa da “livraria” e, com o tempo, Fátima passou a me contar um pouco dos seus perrengues, sonhos e do cotidiano no morro. Sua banca era múltipla. Começou vendendo discos (LPs) e passou para os CDs. Na medida em que o vácuo provocado pela inexistência de livrarias no bairro cresceu, junto com ele se expandiu o negócio ajudado pelos moradores intelectuais do canto do Leme. Eles passaram a abastecê-la com os volumes que não cabiam mais em seus apartamentos. Dela, comprei excelentes livros, alguns mais velhos e outros visivelmente nunca manuseados. É claro que quando me mudei foi no seu “sebo” que foram parar meus amados companheiros que não tinham mais lugar nas estantes da nova casinha. Sabia que eles estavam em boas mãos.
Vou resumir a importância da banquinha lembrando que foi a ela que um músico instrumentista entregou para serem passados adiante seus violino e violão. Fátima vendeu o violino. Mas quis ficar com o violão interessada em aprender a tocá-lo. Com aquela voz divina e poderosa, nada mais justo.
Como dá para ver, nossa amizade é antiga e com isso venho acompanhando suas agruras pessoais. Nascida e criada na comunidade foi uma das “contempladas” uma merreca quando sua casa foi desapropriada. Como o valor irrisório que não lhe permitiu comprar nada no Chapéu Mangueira nem na Babilônia acabou sendo “removida” para uma periferia distante.
Manteve a banca. Seu mundo é o Leme. Mas, para minha tristeza, já não cantava feliz todas as manhãs louvando o dia e a Deus pelo que não era mais seu caminho de vida. Vi Fátima ficar triste e doente. Vi moradores tentando ajudá-la. Vi sua música emocionante deixando nossos despertares, assim como ela havia sido obrigada a deixar seu lar. Vi e ainda a vejo lutando para sobreviver com sua banca na esquina.
O tempo passou. Anos, na verdade. Acabei me mudando também. Graças a Deus ainda para a minha Ponta Leme. Vim morar ao lado da ladeira, a outra entrada da comunidade. Passei a ver e ouvir a vida do meu bairro por outro ângulo. E, por saber que o que estou vivendo, graças as obras de saneamento que muda nossa rotina com o vai e vem de máquinas e trabalhadores “estrangeiros”, é um momento longo, porém passageiro, acompanhado e registrando com muito interesse os acontecimentos da vizinhança.
Pois não é que ontem, fui despertada pela voz de anjo poderoso da Fátima descendo pela ladeira? Sabia que aquilo era o prenúncio de um bom dia! Sonhei que hoje e sempre voltou a ser assim. Mas foi só ontem... Hoje amanheci - e permaneço enquanto escrevo - envolvida pelo zumbido ensurdecedor do superdesentupidor de esgotos que tenta limpar mais uma barbeiragem da obra.
Isso poderia contaminar minha crônica. Não fosse esta dedicada aos justos, aos mansos e àqueles que, como eu, tinham e de vez em quando ainda têm, o privilégio de escutar a voz de Deus ao ouvir Fátima cantando a plenos pulmões pela vida a fora!
...
*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Esta crônica faz parte da série “Ponta do Leme” do SEM FIM http://delcueto.multiply.com


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